Há alguma mudança de fundo no sistema partidário português?
As primárias do PS, a micro-movimentação que surgiu entre o BE e o PS, Marinho
Pinto, chegam para falar em mudanças significativas no quadro global? No meio
da exasperação provocada pela mais regressiva das crises socioeconómicas por
que Portugal passou desde que há democracia no nosso país, é por estas pequenas
mudanças que, ao fim de seis anos, nos vamos ficar?
Comecemos pelas primárias do PS. Para quem sustentou que
elas foram um caso excecional de mobilização cívica numa eleição partidária
desta natureza, lembremos que nelas votaram 178 mil pessoas, 1,8% dos eleitores
inscritos. 2,8 milhões de italianos votaram nas primárias do Partido
Democrático, congénere do PS, 6% dos eleitores; 2,66 milhões de franceses
votaram em 2011 nos candidatos a candidato presidencial do PS, 6,2% dos
eleitores. Costa e Seguro arrastaram proporcionalmente 3,5 vezes menos pessoas.
Dá para descobrir aqui uma mudança substancial do sistema partidário português?
Além da natural atenção dos media e do interesse dos que foram
votar, só os fãs da coisa puderam ver aqui uma daquelas famosas vagas
de fundo que tanto se usa no espesso politiquês nacional.
Ainda por cima, o procedimento só veio agravar a velha tendência do sistema
político português: a de fulanizar a discussão, presidencializar as
escolhas todas, substituindo ideias por homens, carismas, capacidade de
liderança e outras tretas da linguagem domanagement. Mais do mesmo.
A segunda das novidades dizem-nos ter sido a emergência –
"finalmente!", costuma-se acrescentar – de uma "esquerda de
governo". Depois do fracasso da transformação do chamado movimento 3D numa
organização autónoma, caminha-se para a convergência (ao menos isso) com o que
resta da Renovação Comunista e com Rui Tavares no Livre. No domingo passado,
diante de António Costa, Tavares dizia-se “[disponível] para não só influenciar
uma governação”, imagino que do PS, “como de participar nela – controlá-la,
fiscalizá-la”. Com os 2% das europeias não creio que possa fazer grande coisa –
e a eleição de Costa, tão preferida por Tavares ou Daniel Oliveira, deve,
coerentemente, significar que a maioria dos 70 mil eleitores que votaram Livre
se sintam tentados a votar diretamente no PS nas próximas legislativas. Porque
haveriam eles esperar por uma coligação que integrasse um/dois deputados do
Livre no governo PS? O próprio Tavares sintetizou há dias os dois tipos de voto
que diz haver em Portugal: “o voto útil, que é para mudar o Governo e pôr lá
outro primeiro-ministro, e um voto que [até] pode ser por convicção, mas que,
às vezes, lhe chamam inútil porque não permitiria [uma] mudança de Governo e
até constituir um obstáculo” (PÚBLICO, 6.10.2014). Ou seja, se votar CDU ou BE
(ou qualquer outra coisa à esquerda do PS) foi até hoje um voto "inútil",
ainda que "por convicção", porque haveriam os eleitores do Livre
arriscar desperdiçar votos quando o que querem, afinal, é "mudar de
Governo"?
Já nem discuto o que se pretende insinuar com esta crítica
ao voto "por convicção" (seria melhor que se votasse por tática?), e
nem sequer discuto a representatividade desta nova "esquerda disponível
para a governação"; pergunto o que é que aquela outra, a dos anos 80/90,
que o PS foi integrando na sua governação, a terá "influenciado": entre
os que saíram do PCP por não contribuir para a "governabilidade",
conseguiu José Magalhães puxar o PS para a esquerda? Estava Pina Moura,
ministro da Economia e das Finanças de Guterres, à esquerda do resto do governo
PS?, quis travar alguma das privatizações, que bateram recordes naquele
período? Deu José Luís Judas alguma guinada à esquerda na Câmara de Cascais?,
ou nota-se que, vindo da área do BE, Sá Fernandes altere alguma coisa na
política do PS em Lisboa? É claro que era legítimo que todos eles quisessem
abandonar o PCP e o BE e colaborar com o PS! Duvido é que o tenham feito para
mudar a identidade do PS; se alguma identidade/convicção terá mudado terá sido
a deles, a do PS permaneceu intacta – ou melhor, continuou na senda que vem a
percorrer desde os anos 70: sempre para a direita. Margaret Thatcher nunca
militou no PS; o PS é que parece que, em segredo, acredita mesmo no slogan dela
de que "não há alternativa". Mas há alternância.
Resta o novo Partido Democrático Republicano, de
Marinho-Furacão-Pinto. Além da originalíssima soma dos nomes dos dois maiores
partidos norteamericanos, e da preocupação em não repetir a sigla PRD, o que há
de novo em Marinho Pinto? A sua declaração de princípios seria assumível pelo
PS ou pelo PSD. Dizer que “queremos mudar a forma de fazer política em
Portugal” é de uma enorme, ainda que compreensível, banalidade. O PRD quis
fazê-lo em 1985. Beneficiou da profunda deceção que o PS de Soares e Almeida
Santos haviam provocado com o seu governo austeritário com o PSD – e roubaram
quase metade dos votos socialistas de 1983. Mas tinha um Presidente da
República na sombra, coisa que este PDR não terá. O discursoregenerador é
em tudo semelhante ao de Fernando Nobre, em 2011 – e deu o que deu. Tem a mais
uns decibéis com que cala os seus interlocutores e uma verve de vingador que
o aproximam da direita populista europeia. Atrairá o voto de alguns dos
portugueses que, incapazes de outras escolhas, sempre alternaram entre o
candidato do PSD e o do PS, abstraindo, justamente, do partido e das ideias,
mas que desta vez estão mais fartos que o costume. O PRD foi novidade; Nobre já
não o foi; e Pinto é-o ainda menos.
Ao fim destes anos de regressão assustadora, de uma política
de “que paguem os assalariados, os pobres, os desempregados, os velhos!”, de quebra
do contrato social que aguentava de pé um capitalismo com um mínimo de
redistribuição (e a que se deu o nome de Estado Social),
substituído por um capitalismo de casino, envernizado com o palavreado pegajoso
daglobalização – vamos voltar à simples alternância-sem-alternativa?
O remoçado ex-número dois de Sócrates contra um tecnofórmico Passos-bis? É
disto que precisamos?