As leis tornaram-se demasiado complexas, a sua produção quase secreta e a sua alteração quase impossível.
A maior notícia dos últimos dias foi a revelação da existência
de um gigantesco esquema de evasão fiscal montado pelas autoridades fiscais do
Luxemburgo em benefício próprio e de centenas de grandes empresas
multinacionais. Este esquema permitiu poupar às empresas milhares de milhões de
euros em impostos e roubar a mesma quantidade de dinheiro ao erário público dos
países onde estes impostos deveriam ter sido pagos.
Que o Luxemburgo é um paraíso
fiscal é algo sobejamente conhecido. O que é verdadeiramente espantoso neste
esquema – revelado por um grupo de mais de 80 jornalistas do International
Consortium of Investigative Journalists (ICIJ) – é a sua dimensão, a
complexidade das transações realizadas e o grau de organização e de rotina
atingido pela operação.
Entre as mais de 340 empresas cujas operações de evasão fiscal
foram reveladas por esta investigação, conta-se a IKEA, Pepsi, Federal Express,
a consultora Accenture, os laboratórios Abbott, a seguradora AIG, a Amazon,
Blackstone, Deutsche Bank, Heinz, Morgan Chase, Burberry, Procter & Gamble,
Carlyle Group e a Abu Dhabi Investment Authority, para mencionar apenas algumas
das mais conhecidas. As operações estão documentadas em 28.000 páginas de
documentos oficiais a que os jornalistas tiveram acesso.
Uma das coisas mais relevantes nestas revelações é que elas
envolvem um total de transacções da ordem das centenas de milhares de milhões
de dólares (leu bem), realizadas entre 2002 e 2010, a que deveriam corresponder
pagamentos de impostos na ordem dos milhares de milhões de dólares. De facto,
as empresas chegavam a pagar taxas efectivas inferiores a um por cento sobre os
lucros – um valor que, apesar de irrisório, representava (representa) um
prodigioso maná para o Estado luxemburguês.
Outro elemento que nos faz pensar é que todos estes casos
descobertos pelo ICIJ dizem respeito, exclusivamente, a clientes da empresa de
consultoria financeira PricewaterhouseCoopers. Como é provável que outras
empresas de contabilidade proporcionem este serviço
luxemburguês aos seus clientes, percebemos que, apesar de
gigante, esta montanha representa apenas a ponta do icebergue e que o total
envolvido nestas evasões fiscais escapa à nossa imaginação.
Há inúmeras coisas chocantes nesta história. Uma delas é o facto
de se tratar de um esquema sancionado pelo Estado luxemburguês e não de uma
falcatrua perpetrada apenas pelas empresas. O Governo luxemburguês, liderado
pelo actual presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, assinava com
as empresas acordos secretos para ganhar um euro por cada dez ou vinte euros
que as empresas deixavam de pagar nos seus países, comportando-se como uma
espécie de receptador de bens roubados e violando assim a mais elementar
lealdade entre Estados-membros da UE.
Estes acordos secretos com as empresas não eram feitos por uns
governantes corruptos, com o fim de meter uns cobres ao bolso, e que agora vão
ser atirados para a cadeia. Estes acordos eram legais. Secretos, para não
enfurecer os outros Estados-membros, mas legais. Legais à luz da lei luxemburguesa
e legais, juram os dirigentes luxemburgueses, à luz das normas europeias.
Porquê legais à luz das normas da UE, que (em teoria) proíbe todas as ajudas a
empresas que possam enviesar a concorrência? Porque, respondem os
luxemburgueses com ar seráfico, “todas as empresas eram tratadas da mesma
maneira”. Qualquer empresa que quisesse fugir aos impostos encontrava no
Luxemburgo uma mão amiga.
A legalidade desta pouca-vergonha coloca-nos um problema. O
problema é que nos habituámos a definir a lei como o último refúgio da equidade
e da justiça e a considerar o primado da lei como uma característica essencial
das democracias. Mas o que acontece quando a lei apenas defende os mais fortes?
O que acontece quando a lei é não um instrumento para proteger os mais fracos
dos abusos dos mais fortes, como devia ser, mas um instrumento para proteger os
abusos dos mais fortes e para subjugar os mais fracos? O que acontece quando a
lei é iníqua, desumana?
Vivemos no mundo um ataque aos direitos, à liberdade e à igualdade
também no plano legal. Não são apenas as leis (ou os acordos secretos) que
permitem que os ricos não paguem impostos. São as leis que reduzem os direitos
dos mais fracos, que reduzem os apoios sociais, que criminalizam os protestos,
que impedem as greves, que criminalizam os sem-abrigo.
As leis tornaram-se demasiado complexas, a sua produção quase
secreta e a sua alteração quase impossível. É duvidoso que um milésimo da
população da UE soubesse em que consistia o Tratado Orçamental antes de ele ser
assinado. Vivemos, na UE, numa camisa-de-forças legal, composta por tratados
que ninguém discutiu nem aprovou, e que poucas pessoas sabem que consequências
terão. Podemos alterá-los? Em teoria, sim. Mas apenas em teoria. E se a lei se
estivesse a tornar um instrumento de ditadura?