terça-feira, novembro 18, 2014

Machete e a suspensão de direitos fundamentais

Durante muitos anos mal ouvíamos falar do Chancerelle de Machete, confortavelmente acampado na FLAD – Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Elevaram-no a ministro e o homem aproveita-se do poleiro para dizer “coisas” para uma imprensa servil que lhe coloca o microfone à frente. O já pouco brilhante Machete, próximo dos Mobutus angolanos deu ontem um contributo sinistro à sua imagem. Desenvolveu esta ideia, claramente fascizante:

"Os direitos fundamentais sociais têm de assentar num desenvolvimento económico compatível com o nível de satisfação desses direitos e isso é uma tarefa prioritária que pode justificar aquilo que os juristas classificam como certas restrições aos direitos fundamentais, prontas a serem levantadas logo que o desenvolvimento o permita".[1]

Baseando-se em colegas dele, juristas, certamente imaculados defensores da democracia, subordina esta última aos indicadores económicos; aliás, outra grada figura do seu partido, Ferreira Leite, anos atrás já havia referido que se deveria suspender a democracia. Por seu turno, também Passos já havia lançado o mote quando aconselhou a emigração a centenas de milhares de pessoas, retirando-lhes o direito de viverem na sua terra, junto de familiares e amigos. Nesse campo, Passos teve a frontalidade que Salazar não apresentou ao obrigar a atravessamentos da fronteira a salto mas, sorrindo com a entrada de remessas em divisas. A ideia da suspensão dos direitos deverá, pois, ser transversal dentro do gang PSD.

O arguto Chancerelle entende que há um limite mínimo para a vigência dos direitos fundamentais – expressão, associação, greve, manifestação – abaixo do qual aqueles direitos deverão ser suspensos, por decisão da AR. Na realidade, o atual regime já vem limitando o exercício dos direitos sociais - saúde, educação, habitação, circulação, de aposentação e de pensão. Certamente, continuarão a manter as romarias eleitorais porque a colocação de votos em urnas dá à plebe a ideia de que tem o direito de escolher alguma coisa na área da governação.

A Constituição admite a suspensão do exercício de direitos (artº 19º) “nos casos de agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública”, termos que dão margem a várias interpretações, como é típico em textos constitucionais. Aqui, o regime até pode utilizar facilmente a calamidade pública como argumento e criando uma excepcionalidade avulsa ou sucessiva para que o estado de sítio possa ultrapassar os 15 dias constitucionais (nº 5 daquele artigo). A autorização do estado de sítio ou de emergência cabe à complacente AR (artº 138º) e a sua declaração formal compete ao Presidente da República (artº 134, d)), cujo perfil dá todas as garantias para comportamentos fascizantes.

Diz-se que um Estado tem por missão promover o bem-estar da população. Os constantes cortes em rendimentos e direitos associados aos aumentos da carga fiscal usados para alimentar uma dívida que não é utilizada para o bem-estar da população, nem diminui, coloca em total ilegitimidade a governação PSD/CDS. A suspensão dos direitos fundamentais proposta pelo Chancerelle constituiria um selo aferidor dessa ilegitimidade e só poderia ser encarado pela população como sinónimo de golpe de estado, de instauração de uma ditadura, a justificar  a revolta e o devido final do atual regime cleptocrático.

Quais os indicadores económicos subjacentes à sugestão do Chancerelle e qual o seu nível? Durante as décadas que durará a suserania da UE enquanto a dívida pública não chegar aos 60% do PIB? A queda do PIB em 10%? O aumento da dívida pública para 150% do PIB? Depois de os níveis de pobreza atingirem metade da população? O período de tempo necessário para o salário médio se tornar equiparado ao de um vietnamita?

O Chancerelle anula de uma penada o caráter absoluto, irrevogável e inalienável dos direitos fundamentais; provavelmente estará a pensar na sua privatização a um consórcio internacional, eventualmente liderado pela sua tutora Isabel dos Santos, com o argumento do pagamento da dívida.

Nas antigas colónias portuguesas, os direitos vigentes na chamada Metrópole (muito limitados) só abrangiam brancos e assimilados; os “indígenas” só tinham o direito de ser chibatados, de pagar o imposto de palhota e cumprir o trabalho forçado. O Chancerelle sabe disso e pensa aplicar o modelo em Portugal, substituindo os brancos e assimilados por empresários e banqueiros de referência, a classe política e seus mainatos, equiparando os portugueses comuns nos autóctones de terra conquistada. Chancerelle é um neocolonialista.

Salazar também dizia que os portugueses não estavam preparados para a democracia alegando o analfabetismo, a ruralidade, a tradição de obediência, no campo, na fábrica, sob o campanário e, sobretudo sob a égide dos predestinados para difícil condução dos destinos pátrios, isto é, do próprio Salazar. Este era um fervoroso adepto da estabilidade política como aliás acontece com todos os governos, sempre apreciadores da ausência de obstáculos à mentira e ao roubo que os caraterizam; e para o evitar, os partidos políticos eram proibidos. Ainda não estava madura a prática da democracia de mercado, com um partido-estado e duas alas que se revezam mutuamente no poder, sem que se altere nada de substantivo.

E por isso a ditadura de Salazar parecia aplicada a contragosto, paternalmente, como um mal necessário para defender os bons e pacíficos portugueses das más influências de gente subversiva, maldosa, a soldo de potências estrangeiras  para destruir a paz nacional, açambarcar as “nossas” colónias e gerar o caos.

A democracia não era para Salazar um direito absoluto de convivência humana; a generalização de direitos individuais de expressão, divulgação, associação e decisão sobre os interesses coletivos eram modernices pouco adequadas à natureza dos portugueses e mais precisamente pouco desejadas por grupos económicos débeis dependentes do apoio do Estado, dos salários baixos e de limitações para as importações. Chancerelle estará, certamente, de acordo.

O que se prefigurará no círculo íntimo do gang governamental?

Não há instabilidade política em Portugal. Tudo é concertado numa monotonia que rivaliza com a rotatividade dos programas televisivos – telenovela, publicidade, futebol…. Na AR cada um cumpre o seu papel de apoio ao governo ou com o chapéu de oposição, sabendo-se que os primeiros ganham sempre os chamados debates parlamentares. A contestação social não existe e a nível sindical tudo é previsível e ordeiro.

Assim sendo, para que pensam, Chancerelle e outros, na suspensão de direitos? As greves não são muitas nem prolongadas pelo que a suspensão do direito de greve pouco acrescenta. A contratação coletiva já pouco se usa, em detrimento de contratos individuais e maioritariamente precários. A contestação popular ou extra-parlamentar é muito escassa, desorganizada e politicamente infantil. Nada neste cenário justifica que o SIS se movimente como uma nova pide.

No entanto…

A dívida pública cresce apesar das reduções do nível do deficit; as exportações não arrancam e as importações não caem a contento e há indicações de que poderá ocorrer um segundo resgate. Esse resgate, a acontecer, não será acompanhado por mais nenhum dos velhos PIIGS cuja situação não está tão degradada como a portuguesa; nem sequer pela Grécia que tem melhorado os seus indicadores económicos. Ou poderá ser substituído por uma saída do euro e da UE se isso puder funcionar como alívio e alento a uma recuperação da credibilidade da moeda; o que tornaria Portugal num pequeno pedaço abandonado da Jangada de Pedra de Saramago.

É evidente que essas hipóteses configuram um desastre maior que o actual – empobrecimento acelerado, redução do aparelho de estado às funções de “soberania” - tropa, polícia tribunais e punção fiscal - com a maioria da população lançada à sua sorte, minimizada pela caridade em vez de uma ação social respeitadora da dignidade de cada um.

No caso de saída do Euro e da UE o cenário é dantesco: dificuldades de exportação, importações muito caras porque obtidas tendo de permeio uma moeda nacional em constante desvalorização. aumento astronómico da dívida externa pública e privada medida em moeda nacional, inflação, perdas enormes de poder de compra para aguentar um capitalismo atrasado e subalterno, com a brutal repressão ajustada à desastrosa situação.
Estes cenários justificariam, para o gang governamental actual, uma suspensão ad eternum dos direitos fundamentais. A hipótese colocada pelo Chancerelle anda nos corredores do poder e o homem descaiu ou é ele que mandou os bitaites à toa, levianamente?