quarta-feira, novembro 12, 2014

Merkel, a educação e Portugal

Do ponto de vista da substância, é irrelevante o que Angela Merkel diz sobre a educação em Portugal. Merkel é absolutamente ignorante sobre a educação portuguesa e não é, nem nunca foi, em lado algum, uma referência sobre assuntos educativos. Deste ponto de vista, o que Merkel diga ou não diga tem um valor estéril.
Todavia, de outros pontos de vista, o que Angela Merkel disse acerca do número de licenciados em Portugal já não é irrelevante. 

Do ponto de vista conceptual, é relevante, ainda que não constitua surpresa, que a chanceler alemã defenda uma estratificação planificada das vocações dos jovens de cada país. Segundo ela (e muitos outros), uma percentagem pré-determinada e minoritária dos jovens deve ter acesso a uma formação superior, e a restante percentagem, maioritária, deve ficar com uma formação média, cuja designação eufemística é a de curso profissionalizante ou vocacional. A este propósito, é curioso assinalar a facilidade com que encontramos, nas ideologias auto-classificadas de personalistas e que afirmam a defesa intransigente do indivíduo e da sua liberdade de escolha, buracos negros nesse mesmo personalismo e na consequente defesa da liberdade individual, sempre que esteja em causa a manutenção dos interesses instalados no modelo social dominante. Na verdade, pretender condicionar o desenvolvimento das vocações dos jovens, em função de percentagens que o modelo social existente necessita para se perpetuar, é atraiçoar grosseiramente os ditos valores personalistas, de que políticos como Merkel se reclamam representantes.
É igualmente curiosa a designação (já antiga) de cursos profissionalizantes ou de cursos vocacionais (mais recente) para designar os cursos que muito cedo se focalizam em exclusivo no desenvolvimento de competências técnicas, e que, em regra, descuram por completo a formação humanista. Na realidade,  a designação é eufemística, pois pretende amenizar a verdadeira desvalorização formativa e social que estes cursos comportam: a nível formativo, amputam a educação dos jovens, retirando-lhes o acesso a uma componente fundamental da educação, a componente ministrada pelos saberes humanistas; a nível social, «vocacionam» os jovens para assumirem exclusivamente funções de execução técnica, cuja orientação e controlo é realizada pelos que têm acesso à formação de nível superior. Mas, além de eufemística, esta designação é deliberadamente enganadora — como se qualquer curso superior não fosse também ele um curso vocacional e profissionalizante, curso que justamente possibilita a realização da vocação de quem o escolheu e que capacita para o exercício de uma profissão.
Última curiosidade: é precisamente junto daqueles que dizem chamar a si a intransigente defesa dos elevados valores humanistas que encontramos o mais ostensivo abandono desses valores, feito em nome da capacitação profissional, ou, se se preferir, da capacitação vocacional. Segundo este modo de ver as coisas, a assimilação dos elevados valores humanistas deve ficar restrita à elite que, vá-se lá saber como, faz deles tábua rasa quando reserva para si própria a exclusividade do acesso a esse mesmos valores e o acesso à direcção da sociedade.

Analisada agora do ponto de vista político, a afirmação da chanceler é igualmente relevante. É relevante que a alemã Angela Merkel se considere possuída do direito de opinar publica e depreciativamente sobre a política educativa de um outro país soberano, independentemente de ser falso (e o que ela afirmou é grosseiramente falso) ou verdadeiro aquilo que diga. Para além da evidente falta de sentido de Estado e de respeito institucional a que deveria sentir-se obrigada, Merkel vai consolidando a  estratégia político-ideológica que afirma o poder alemão como o verdadeiro poder da Europa. O poder que põe, dispõe, define e manda.
Esta é a estratégia do poder político alemão desde há alguns anos, e que um político como Passos Coelho, pela posição de impressionante subserviência que sempre manifestou, ajuda a consolidar. Aqueles que, como Passos Coelho, abdicaram de representar quem os elegeu e abdicaram de representar a soberania, a nação e a história de que emanam serão objectivamente co-responsáveis pelas graves consequências de eventuais desmandos germânicos que novamente venham a colocar a Europa no centro de um conflito bélico.