quinta-feira, novembro 13, 2014

OE 2015, manter a troika para além da troika

Sintetizar o significado do Orçamento do Estado para 2015, é dizer que se trata de um instrumento com que o governo trata de burlar os portugueses. Concretamente, os que vivem do seu trabalho.
Basta atentar na contradição da conversa do primeiro-ministro que, no discurso (escrito) de abertura do debate diz uma coisa sobre a reposição dos salários dos funcionários públicos, e meia hora depois diz o contrário.
A contradição foi, contudo, apenas de palavras: de facto (ai de quem lhe escreveu o discurso), o que Passos Coelho queria dizer e tenciona fazer é não cumprir a determinação do Tribunal Constitucional e manter os cortes salariais. Apesar disto, toda a polémica parlamentar à roda do OE se construiu à volta de fábulas, mostrando em última análise o à-vontade com que o governo persiste na sua política de esmagamento do trabalho, preparando-se para completar o último ano da legislatura como quem morre na cama, depois de tudo o que fez nestes três anos.
Fábula 1: há guerra no governo
O anúncio da baixa de impostos, de que o CDS se quis fazer paladino, resultou em nada. Houve mesmo quem falasse em “derrota do CDS”, dando crédito à ideia de que há uma facção menos má no governo. Se se prestasse alguma atenção aos estragos que o ministro Mota Soares (CDS) tem feitos na Segurança Social, perseguindo da forma mais canalha os mais pobres dos pobres, e lapidando sistematicamente todos os apoios aos assalariados — perceber-se-ia melhor o real papel que o CDS tem no governo e a sintonia perfeita entre Passos e Portas. Igualmente, se se atentasse no que tem feito o ministro Pires de Lima (CDS), que chegou ao governo com a promessa de baixar o IVA e afinal viu que “não há condições”.
Fábula 2: a troika já se foi
Bastou o sr. Poul Thomsen (o encarregado do FMI para a Europa) dizer que Portugal deve continuar na mesma via, para que todas as discussões sobre baixa de impostos morressem. O homem foi tão claro que não deixou margem para dúvidas: “Portugal deve continuar a seguir o rumo definido no programa de ajustamento, mantendo a consolidação orçamental e pondo em prática reformas estruturais”. Por consolidação orçamental deve entender-se o aperto fiscal e salarial sobre a massa trabalhadora; e, por reformas estruturais, privatizações de serviços públicos, cortes na Segurança Social, desmantelamento da Saúde e do Ensino. Isto é, a troika mantém-se mesmo tendo-se ido embora.
Fábula 3: o alívio fiscal
O magro ganho que o governo promete no IRS para algumas famílias tem como contraponto a baixa significativa do IRC, sobre as empresas. Mas não só isto: há toda uma lógica diferente para justificar uma coisa e outra. O IRC não só baixa em Janeiro próximo de 23% para 21% como tem já previstas quebras em anos sucessivos até aos 17%. Mais: a comissão do IRC (presidida por Lobo Xavier, outro CDS) defende que esta baixa “só deveria ser interrompida em face de constrangimentos excepcionais”. Ou seja, a lógica exactamente contrária à que o poder aplica à baixa do IRS — que só poderá verificar-se nas condições de um crescimento económico que ninguém vislumbra.
Por fim: como vai o governo compensar a quebra de receita do IRC (207 milhões de euros)? — com a perseguição fiscal e o corte de salários sobre o trabalho, evidentemente.
Fábula 4: a nova oposição PS
Os novos dirigentes do PS viram no OE nada menos que um sinal de “desagregação” do governo. Ao que os responsáveis do PSD responderam, não senhor, que o OE revela um “governo coeso”. Empate, portanto, na nulidade política das afirmações.
Quanto à matéria que importa, nem António Costa nem o grupo parlamentar se comprometeram com nenhumas medidas concretas. Costa ainda justificou a moleza do PS com o facto de ainda não haver liderança eleita (a sair do próximo congresso). Mas os factos apontam para outro lado: na contingência de vir a ser governo daqui a um ano, o PS não se quer comprometer com afirmações que tenha de desmentir no dia seguinte. Ou seja, também com o “novo” PS a troika persistirá para além da troika.
Fábula 5: o governo representa-se a si mesmo
A acreditar na maioria dos comentadores, o governo permite-se prosseguir a mesma política por obstinação do primeiro-ministro e pela sua fidelidade aos ditames alemães. Mas para lá disso o governo tem apoios internos, a quem representa — a banca e o grande capital, em primeiro lugar. Mas também o capital de uma forma geral, que conta com o estrangulamento do trabalho para poder manter-se vivo. O OE e a continuidade da política de Passos e Portas nem veriam a luz do dia se não contassem com esses apoios — uns activos e influentes, outros passivos e expectantes por não terem alternativa. Alguém ouviu críticas da finança, da grande indústria, dos monopólios da distribuição e da energia ao OE ou ao rumo traçado pelo governo?