Quando Phil Manzanera, o antigo guitarrista dos Roxy Music,
entrou no Astoria, barco-estúdio que David Gilmour mantém ancorado nas margens
do Tamisa, não sabia o que iria encontrar. Sabia que estavam ali 20 horas de
música e que queria ouvir tudo, nota a nota. Estávamos em Agosto de 2012 e
Manzanera ouviu realmente tudo.
Enquanto
ouvia foi tirando notas, tentando descobrir maneira de dar forma a tudo o que
tinha perante si. “Pensei no universo da música clássica e organizei tudo em
quatro andamentos. Pensei como fã dos Pink Floyd, pensei em todos os períodos
da sua carreira que gostaria de recordar. Ao fim de seis semanas, tinha
reduzido as gravações a 75 minutos”, conta em entrevista ao Ípsilon desde
Inglaterra. Ao final de um mês e meio, o esqueleto estava criado. The
Endless River, a despedida que é homenagem a Rick Wright e, ao
mesmo tempo, “um portal que derrama luz sobre períodos diferentes [da banda],
quase um documentário”, preparava-se para ser anunciado.
A próxima segunda-feira assinala oficialmente o fim. Dia 10 de
Novembro, será editado The Endless River, o 15º
álbum de originais dos Pink Floyd. 47 anos depois da estreia com The
Pipper At The Gates of Dawn, quando eram banda liderada pelo génio
criativo de Syd Barrett, os Pink Floyd deixarão de existir. Não mais se
reunirão para “jammar”
no Astoria. Os 15 álbuns serão toda a história. O título do que a encerra,
porém, não aponta ao fim. The Endless River. Como se o
fim não o fosse realmente.
Phil Manzanera, que foi juntamente com Andy Jackson e Youth o
produtor do disco, sabe isso perfeitamente. Aquilo que os Pink Floyd criaram é
demasiado precioso para que tal aconteça. “Para mim, o momento épico [de The
Endless River] é aquele início quando, depois das vozes em
conversa, se ouve o teclado do Rick [Wright] e a guitarra com um [pequeno
aparelho electrónico] E-bow do David [Gilmour]. Estão só os dois a
improvisar e é absolutamente mágico”, recorda. “Foi gravado em DAT, portanto
não podíamos alterar nada, mas eles sabiam intuitivamente para onde estavam a
ir. É como uma belíssima peça de música clássica, como Vaughn Williams. Há jams
ocasionais como essa ao longo do álbum e é aí que a magia acontece”.
O tempo Pink Floyd
The Endless River começou a nascer quando
David Gilmour pensou em incluir alguns extras na reedição de The
Division Bell, o penúltimo álbum dos Pink Floyd (1994). Lembrou-se
de todo o material que a banda acumulara durante esse processo de gravação e
que chegara a ser pensado como álbum instrumental. Pediu ao velho amigo
Manzanera que investigasse o que haveria escondido. E eis então Manzanera a
entrar no Astoria. Selecção feita, mostrou os 75 minutos de música a David
Gilmour. Este concordou que havia ali um álbum, não mera colecção de extras.
“Podes mostrá-lo ao Nick?”, perguntou. Manzanera mostrou-o, Nick Mason gostou
do que ouviu e, depois, “nada aconteceu durante nove meses”, conta Phil
Manzanera. “Entraram no que chamo o ‘tempo Pink Floyd’. Lento”, diz entre
risos. Quando se decidiram avançar, porém, o processo acelerou decisivamente.
Youth, baixista dos Killing Joke, produtor que trabalhara com
David Gilmour em Metallic Spheres, dos Orb,
foi chamado a colaborar e o guitarrista tomou as rédeas da operação. “O David
decidiu que o melhor a fazer seria juntar as ideias de toda a gente e sugeriu
que nos juntássemos em estúdio”. Estávamos em Janeiro de 2014. “Se quiser, o
David consegue fazer tudo. Pode ser produtor, guitarrista, cantor. Felizmente,
isso é demasiado trabalho e ele precisa de colaboradores. Mas tornou-se o
capitão do navio, aquele que iria devolver novamente ao cais o navio Pink
Floyd”. O processo de um perfeccionista. “Só há um mês é que deu tudo por
terminado [falámos com Manzanera em Outubro]. Até lá, ainda estava a fazer
pequenas alterações”.
Eis então David Gilmour e Nick Mason novamente em estúdio, no
Astoria, a trabalhar livremente com Rick Wright, falecido em 2008, mas presente
através da música que deixara gravada há vinte anos - ou bem mais longínqua no
tempo: Ouviram “o excerto de um ensaio de Rick no Royal Albert Hall, em 1968”,
e decidiram que tinham que incluí-lo no álbum. Esse pedaço de música tornou-se
o tema Autumn ‘68, e a partir desse
momento Gilmour e Mason ganharam consciência: “começou a emergir que Endless
River era como que um tributo ao Rick e ao seu estilo de
tocar”. Algo mais se tornou óbvio. Que o álbum seria instrumental. Phil
Manzanera explica porquê. “Se olharmos para história dos Pink Floyd, o contexto
musical, mesmo nas canções de Roger Waters, sempre foi criado pelos acordes e
sons de Rick Wright, pela guitarra e voz de David Gilmour e pelo estilo de Nick
Mason na bateria. Juntos criaram um conjunto único de sons”.
Endless River, como ouvimos no seu único tema
cantado, Louder than words (letra
de Polly Samson, mulher de David Gilmour), é a forma de, na despedida,
cristalizar essa simbiose única. Citamo-la:
“This thing that we do /louder than words / The way it unfurls / it’s louder than words / The sum of our parts / the beat of our hearts / is louder than words”. Lemos e
questiamo-nos: Roger Waters, que abandonou os Pink Floyd em 1985, mas é,
obviamente, indispensável para o legado que criaram, estará incluído naquele
‘nós’? E, dado que esta será a despedida da banda, não deveria ele ter sido
incluído, tal como reclamam muitos fãs desde que Endless
River foi anunciado? Phil Manzanera explica que tal nunca foi
contemplado. “O convite a participar teria sido injusto para o Roger. Ele não
esteve envolvido nas jamsoriginais [na década de
1990]. É imensamente bem-sucedido na viagem que tem sido a sua carreira e não
precisa disto. De qualquer modo”, acrescenta, “ele acaba por estar no disco. O
David tocou quase todos os baixos e fê-lo ao estilo de Roger Waters”.
Uma linguagem comum
Phil Manzanera lembra-se de tudo. Conheceu David Gilmour quando
tinha 16 anos. Ele era estudante, Gilmour já estava nos Pink Floyd. “A outra
pessoa que conhecia no meio era o Robert Wyatt, dos Soft Machine [curiosamente,
Wyatt também anunciou, esta semana, o fim da sua carreira]. Dado que os Soft
Machine e os Pink Floyd eram as bandas mais cool em Londres em 1968, eu andava
bastante feliz. Só pensava em entrar para uma banda. Um dia perguntei ao David
como o fazer. Não sei o que ele me respondeu, mas deve ter sido uma óptima
resposta, porque pouco tempo depois acabei nos Roxy Music”.
Foi já enquanto guitarrista da banda de For
Your Own Pleasure ou Strandedque
assistiu à transformação dos Pink Floyd de ícones da contracultura em banda de
sucesso massivo. “Estavam sempre em busca da tecnologia mais moderna, quer em
termos de som, quer em termos de iluminação e de imagens. Tornaram-se um nome
estabelecido e, partir de Dark Side Of The Moon, cada
vez maior, principalmente pela forma como desenvolveram a sua apresentação em
palco, bebendo da vanguarda, mas tornando-a aceitável ao grande público”.
The Endless River não é, porém, acerca desse
lado dos Pink Floyd. É algo de mais íntimo. Três músicos que descobriram
uma linguagem comum, inconfundível. “Cada um deles tem algo de único”, começa
por dizer Phil Manzanera. Depois corrige. “O David, na verdade, tem duas
características únicas. A sua voz, muito pura e muito britânica, e a sua
guitarra. Ele toca uma nota e qualquer pessoa o identificará imediatamente. É
muito difícil conseguir isso”. Em Rick Wright, por sua vez, destaca-se um quase
paradoxo: “Apesar de adorar jazz, não há jazz nas teclas que tocou nos Pink
Floyd. Os seus acordes estão mais próximos da música clássica. E, mais uma vez,
basta ouvirmos uma das suas notas suspensas no Hammond, um som muito estático,
ou o seu som característico, assemelhado a uma trompa, e percebemos
imediatamente que estamos perante os Pink Floyd”. Para completar o quadro, Nick
Mason. “Também ele tem o tempo Pink Floyd. Um groove muito lento. E é estranho.
Nick não é tecnicamente o melhor baterista do mundo, tal como Ringo não o era,
mas tal como Ringo era o melhor baterista para os Beatles, Nick é o melhor para
os Pink Floyd. Há milhares de bateristas mais evoluídos tecnicamente, mas no
minuto em que o ouvimos tocar com David e Rick… É único. Quão sortudos são por
terem conseguido isto?”
The Endless River são 52
minutos de música, divididos em quatro secções que estabelecem ligação directa
com o passado dos Pink Floyd. É uma viagem sentimental, um Requiem pela banda
que agora se despede. “Acho que agora o trabalho deles está feito. Foi bom
terem criado este capítulo final com a música no centro do palco, em vez de
canções sobre o Syd [Barrett] ou o Roger [Waters]”. O trabalho está feito. A
música continua rio abaixo.