terça-feira, novembro 11, 2014

Treta da semana (passada): dez questões.

O Mats traduziu um artigo criacionista propondo «10 questões que todo evolucionista tem [de] saber responder»(1). É um truque comum. Como responder dá mais trabalho do que inventar perguntas disparatadas, conseguem dar a impressão de que a ciência é uma trapalhada. É especialmente prático quando fingem que não há respostas ou quando apresentam mentiras como se fossem perguntas. Por exemplo, «Porque é que a ciência demonstra que todas as espécies animais têm limites rigorosos em torno do quanto que eles (ou o seu ADN) se pode alterar». Não há “limites rigorosos” que impeçam o ADN de uma espécie de se tornar no ADN de outra pela acumulação de mutações. Talvez aproveite outras destas perguntas mais tarde mas, por agora, fico-me pela primeira, que já dá para um post. 

«Porque é que a ciência diz que a vida evoluiu de matéria sem vida mas por outro lado declara que a geração espontânea é impossível? 

Até há uns séculos, era fácil assumir que o pão ganhava bolor ou que apareciam larvas de mosca na carne podre porque brotavam espontaneamente da matéria em decomposição. Era senso comum que organismos aparentemente tão simples fossem um produto da decomposição e não seria razoável que Deus passasse os dias a criar bolor ou larvas de insecto em tudo o que apodrecia. A conclusão era de que os organismos complexos teriam sido criados por um deus mas a bicharada e o bafio surgiam por geração espontânea. 

Com o tempo, descobriu-se que mesmo os seres vivos mais pequenos são imensamente complexos e mostrou-se que o que toda a gente julgava saber estava errado. As larvas da mosca vinham de ovos de mosca e não da carne podre. Não se formavam seres vivos espontaneamente de um momento para o outro. Por outro lado, Deus também foi explicando cada vez menos. Por exemplo, se no Paraíso não havia morte não se percebe porque teria criado tantas espécies dependentes da putrefacção. A teoria da evolução resolveu este dilema, mostrando como a geração de vida pode ser espontânea, no sentido de não precisar do acto consciente de um criador, mas sem exigir que algo tão complexo como um ser vivo se forme de uma assentada, pela combinação súbita e improvável dos elementos que o constituem. 

A teoria da evolução é, em abstracto, um esquema para gerar modelos de certas populações. Nomeadamente, populações de algo que se replica e que herda características que afectem a probabilidade de replicação. Nessas condições, a teoria da evolução permite compreender, descrever e prever como a população muda ao longo do tempo. Tanto faz que seja de seres vivos, como bactérias, moscas ou humanos, ou de seres inanimados, como vírus, moléculas ou até sequências de bits no computador. A ideia fundamental é que quaisquer mutações que reduzam a probabilidade de replicação tenderão a ser eliminadas e quaisquer mutações que aumentem a probabilidade de replicação tenderão a fixar-se na população. Assim, mesmo que as mutações benéficas sejam muito minoritárias, com o passar das gerações a população vai evoluir para uma população de entidades mais aptas para se reproduzirem naquele ambiente. 

O problema da ideia original da geração espontânea era exigir que seres complexos surgissem subitamente. Evidentemente, não é plausível que larvas de mosca surjam da carne podre de um dia para outro. Para isso teria de haver um deus a fazer milagres ou ir lá uma mosca pôr ovos. A experiência de Pasteur confirmou que a segunda hipótese é a correcta. Mas algo é espontâneo quando ocorre sem que seja preciso uma causa especial. Não é preciso ser rápido. E a teoria da evolução explica como as moscas, e todas as outras espécies, surgiram de forma espontânea a partir da interacção de moléculas simples. Não sabemos ainda os detalhes – há vários candidatos para essa “sopa” inicial e muitos pormenores por deslindar – mas os traços gerais do mecanismo são claros. A partir de replicadores simples, a acumulação de mutações ao longo de milhares de milhões de gerações foi gerando replicadores cada vez mais eficazes, muitos dos quais são tão complexos que dizemos estarem vivos. 

Em suma, o que a ciência diz é que a vida surgiu da matéria inanimada de uma forma espontânea, sem milagres, deuses ou causas sobrenaturais. A hipótese antiga da geração espontânea apenas foi descartada porque subestimava, em várias ordens de grandeza, o tempo que esse processo exigiu. 

1- Mats, 10 questões que todo evolucionista tem que saber responder


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