domingo, novembro 16, 2014

Treta da semana (passada): evidência anedótica

Em resposta a um texto de Carlos Fiolhais, no qual este criticou a homeopatia (1), Paulo Varela Gomes alegou estar «profundamente zangado» porque o «ataque à homeopatia não tem pés nem cabeça, é insultuoso, mentiroso, e demonstra uma ignorância inacreditável»(2). À parte de uma vaga referência a «rígidos e incrédulos cientistas» e «perfiladas instituições académicas», Gomes justifica a sua acusação com uma experiência pessoal. «Houve um dia em que acordei de manhã com um alto no pescoço. […] era um cancro de grau IV – ou seja, letal. Metástases na cadeia linfática, etc. Consultei vários oncologistas aqui e ali e até acolá (no estrangeiro): três a quatro meses de vida. […] Isto foi no final de Maio de 2012. [...] Em poucas palavras: tenho dois anos e meio de qualidade de vida por cima da sentença de morte ditada pelos oncologistas da medicina oficial.» A causa do milagre, segundo Gomes, é que «tenho sido acompanhado pela medicina homeopática». Perante tal tragédia, custa criticar o raciocínio. Fiolhais fê-lo com uma diplomacia exemplar (3). No entanto, penso que a tese de Gomes merece ser mais dissecada mesmo sacrificando algum tacto diplomático. 

Se uma pessoa tomar um medicamento homeopático e morrer no dia seguinte não se justifica, só por isso, considerar que o medicamento homeopático é um veneno mortal. Como Fiolhais aponta, «um caso particular não permite tirar conclusões» porque, «Quando observamos um efeito, para lhe atribuirmos uma causa específica temos que excluir as restantes causas possíveis»(3). Não é uma tarefa fácil. Na prática, a relação causal é complexa, probabilística, e nunca conseguimos cobrir absolutamente todos os factores. Quando se diz que o tabaco causa cancro o que se quer dizer é que, sendo o resto aparentemente constante dentro do que podemos observar, o fumador tem uma probabilidade de cancro maior do que teria se não fumasse. Ou seja, o tabaco é um factor causal com um efeito estatisticamente significativo. Por isso, para determinar causas é preciso observar vários casos, tantos mais quanto mais fraca for a relação causal entre os factores que monitorizarmos. Só assim podemos encontrar as correlações, mais fortes ou mais fracas, que uma relação causal origina. 

Mas a mera correlação não basta porque a noção de causalidade não é apenas acerca daquilo que ocorre. É também uma afirmação acerca daquilo que hipoteticamente teria acontecido se o factor causal se tivesse alterado. Por exemplo, a correlação entre a incidência de doenças respiratórias e o número de cinzeiros no domicílio não demonstra que ter cinzeiros cause doenças respiratórias ou, ainda mais estranho, que doenças respiratórias causem a posse de cinzeiros. Porque não se espera que a incidência de doenças respiratórias seja diferente daquilo que seria se, hipoteticamente, tirássemos ou oferecêssemos cinzeiros às pessoas sem alterar mais nada. Neste caso, a correlação surge apenas por haver um outro factor causal comum e não por uma relação causal entre os factores observados. Este carácter contrafactual da causalidade obriga-nos a ir além da mera correlação para poder identificar relações causais. 

Não sendo possível voltar atrás no tempo para comparar cenários hipotéticos alternativos com os mesmos indivíduos – por exemplo, para ver o que teria acontecido a Gomes se não tivesse tomado medicamentos homeopáticos – é preciso simular essa comparação usando grupos diferentes mas equivalentes. Por exemplo, se quisermos testar o efeito de um produto químico na fertilidade de uma espécie de mosca podemos usar dois grupos de moscas, em recipientes separados. Um, o grupo experimental, fica exposto ao composto a testar. O outro, o grupo de controlo, será criado em condições idênticas ao primeiro em tudo excepto na ausência desse composto. Se as moscas forem atribuídas a cada grupo aleatoriamente e não variarem outros factores, então qualquer correlação observada será um bom indício de uma relação causal. 

É isto que se faz em ensaios clínicos, mas com o problema adicional de se lidar com pessoas. As moscas são mais fáceis de manipular e o número de descendentes de cada geração é um indicador objectivo. As pessoas são muito mais inteligentes e seguir a evolução de uma doença exige considerar sintomas que o doente reporta e que o médico tem de classificar, tarefas que envolvem muitas decisões subjectivas. Por isso, nos ensaios clínicos é necessário que nem o paciente nem o médico que o avalia tenham qualquer indício do grupo – experimental ou controlo – no qual o doente foi colocado. Caso contrário, estaremos a introduzir outras correlações que irão influenciar o resultado. Isto faz com que um ensaio clínico fiável seja muito difícil de implementar, na prática, porque a nossa espécie é notoriamente matreira e sensível a pequenos detalhes. Basta uma pequena diferença na postura do enfermeiro que injecta o medicamento (ou placebo) no saco de soro para que o paciente perceba em que grupo está. E, quando se trata de pessoas com doenças terminais, como o cancro, é muito difícil que um ser humano reaja da mesma forma quando administra uma droga experimental que é a última esperança daquela pessoa ou quando administra um placebo que sabe não vai adiantar de nada. 

O princípio homeopático das diluições é tão contrário ao que sabemos como a possibilidade de voar agarrando as botas e puxando-as para cima. Se as evidências para qualquer destes efeitos forem suficientemente sólidas, será sensato rever os princípios que nos dizem que isto é impossível. Mas têm de ser mesmo sólidas. E não são. O que acontece na homeopatia é que a suposta relação causal diminui conforme aumenta a qualidade dos ensaios clínicos, o que sugere que os resultados estão a ser afectados por outras correlações e não pela relação causal procurada (4). Por isso, e ao contrário do que Gomes implicitamente defende, não se justifica ainda descartar tudo o que sabemos da química para declarar que a homeopatia funciona. 

1- Público, Ciência diluída
2- Público, Carta aberta a Carlos Fiolhais
3 – Público, Ainda a ciência diluída
4- Shang et al, 2005, Are the clinical effects of homoeopathy placebo effects? Comparative study of placebo-controlled trials of homoeopathy and allopathy.Lancet. 2005 Aug 27-Sep 2;366(9487):726-32.


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