Um dos efeitos mais
conspícuos das redes sociais, que transformaram nos últimos anos o espaço
público, é a captação e formação de centros e ondas colectivas de força
timótica. Esta palavra vem do grego thymós, que está na base de uma teoria de Platão e designa o
“órgão” de onde nascem os impulsos, as excitações, as afecções mais inflamadas.
O filósofo alemão Peter Sloterdijk escreveu um “tratado” sobre a situação
timótica da nossa época, com o título Cólera e Tempo (tradução portuguesa de Manuel Resende,
Relógio d’Água). As questões políticas e os políticos são objectos
preferenciais dos impulsos timóticos que atravessam não só as redes sociais mas
também o jornalismo político, sobretudo aquele que, sob a forma do comentário e
da chamada “análise”, existe em estado de proliferação (mas, atenção, nada
disto tem a ver com o que se chama “psicologia das massas”). Assim, a cena
política que daqui resulta é aquilo que hoje mais se aproxima do teatro
dionisíaco ateniense. O subtítulo do livro de Sloterdijk diz-nos que é um
“ensaio político-psicológico”. Trata-se de um sério e extenso contributo para o
desenvolvimento de uma psicopolitologia, capaz de uma análise da timótica
política, para a qual os nossos encartados politólogos não têm instrumentos.
Não foi por falta de um saber psicopolítico que Kral Kraus abriu a sua comédia, A Terceira Noite de Walpurgis, dizendo que “sobre Hitler não me vem nada à
cabeça”. Mas é seguramente por ignorância nos domínios da análise psicopolítica
que ainda nenhum analista proferiu a sentença: “Sobre José Sócrates não me vem
nada à cabeça”. A questão de fundo, que consiste em perceber como funcionam as
reacções timóticas que em certos momentos se apoderam de todo o espaço público,
através das redes sociais, dos jornais, da televisão e do rádio, precisa no
entanto de mais um esforço. Os media parece que gostam do cidadão indignado,
mas impotente. Eles são um órgão da memória pública, mas com uma especial
preferência pela má memória, aquela que produz o homem do ressentimento. Um
olhar analítico sobre a psicopolítica que nos rodeia, ainda que munido de um
parco saber nesta matéria, verificará que, graças ao estado permanente de alta
tensão timótica, instaurado pelos meios destinados a garantir o sucesso dos
indivíduos carregados de thymós, vivemos numa espécie de guerra civil sem fim.
Colocar a questão desta maneira não é apelar a consensos e a um abaixamento do
teor crítico, na medida em que a inflação timótica não tem qualquer dimensão
crítica e, parecendo ser um factor de mobilização, acaba por produzir a
indiferença. Ora, se considerarmos, deste ponto de vista, o ambiente político,
se escutarmos a gritaria histérica ou, pelo menos, a tagarelice dos seus corpos
indignados ou dados ao niilismo retórico, percebemos que a situação não tem
saída. Porque os meios e a estrutura do espaço público promovem o triunfo da má
memória que não engendra futuro, produzem uma história paralisante,
satisfazem-se numa eterna ruminação. Basta ver como os políticos estão
agarrados a esta lógica, no modo como encontram sempre no passado dos
adversários um álibi. E, assim, é o passado que regressa sempre, como matéria
do ressentimento ou legitimação do crime. Muitas vezes, apetece reclamar que se
faça tábua rasa, que venha um esquecimento libertador que permita começar tudo
de novo. Por exemplo: que nos seja concedida a felicidade suprema de uma
profunda amnésia apagar o nome de José Sócrates da cabeça dos seus amigos e dos
seus inimigos e passar a residir apenas nos arquivos.