terça-feira, dezembro 09, 2014

Ensaio em Louvor da Nudez

1. A nudez é o grau zero

Não nos despimos: vestimo-nos. É um lugar comum que todos nascemos nus, mas é menos frequente observar-se que quase a primeira coisa que se faz ao recém-nascido é vesti-lo - acto tão precoce que quase transforma o estar vestido em natureza, naturaliza o pudor de estar nu e torna quase impensável o pudor de estar vestido.

"Quase" é aqui a palavra-chave. Só dispensa esta palavra quem se esqueceu do trabalho que dá habituar uma criança pequena a não se despir - e, em maior grau, a não se descalçar - sempre que lhe apetece.

Todos nós estamos nus por defeito e qualquer peça de vestuário é sempre um acrescento. Por isso me intriga tanto a pergunta que se faz a actores, modelos e actrizes: "Seria capaz de actuar nu?" Intriga-me mais ainda a resposta convencional: "Sim, mas só com a devida justificação." Em certas artes performativas, sobretudo a dança, parecer-me-ia mais natural que se perguntasse ao entrevistado se seria capaz de actuar vestido e que a resposta fosse "sim, se se justificar." O que necessita de razão e motivo não é o corpo, mas sim aquilo que se acrescenta ao corpo.

Intriga-me também que exista um substantivo - "nudez" - para designar o estar nu, que é um estado neutro, e não exista um termo para designar o estar vestido, que é um estado positivo e tem um conteúdo. É como se a própria língua se aliasse aos pudibundos, permitindo-lhes dizer que a nudez os ofende, ao mesmo tempo que dificulta a expressão a quem se sente moral e esteticamente ofendido ao ver roupas que de incongruentes se tornam grotescas.


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