quarta-feira, dezembro 10, 2014

Ensaio em Louvor da Nudez

2. Andar descalço

Um dia, em Maiorca, uma adolescente portuguesa saía da praia. Preparava-se para seguir descalça para o hotel, a exemplo de muitas outras jovens, quando o pai interveio, numa fúria. Nem pensar! Ia já, ali mesmo, comprar umas havaianas novas. Descalça na rua é que nunca - nem mesmo para percorrer cem metros.

Fiquei a pensar nas razões por que uma jovem alemã pode andar descalça na rua e uma jovem portuguesa não pode. Ocorreu-me a distinção antropológica entre as culturas da vergonha ligadas ao catolicismo e as culturas da culpa ligadas ao calvinismo. Se bem que Portugal seja cada vez menos uma cultura da vergonha - já ninguém se suicida por ter ido à falência, e as elites comportam-se publicamente da maneira que sabemos - a presença de uma plateia continua a influír nos comportamentos como não influi no Norte da Europa e na costa Leste dos Estados Unidos.

Como Nathaniel Hawthorne no século XIX, John Updike foi, no século XX, o cronista por excelência da Nova Inglaterra. Na sua colectânea de ensaios Hugging the Shore dedica um texto ao andar descalço - hábito típico dos white anglo-saxon protestants no Nordeste dos Estados Unidos a que o autor chama uma forma discreta de nudismo. E o nudismo é, paradoxalmente, uma decorrência indirecta da cultura calvinista que faz prevalecer a consciência individual sobre a opinião alheia mesmo quando faz desta critério daquela. O homem que dialoga individualmente com Deus está naturalmente nu perante ele.

Podemos encontrar a contraprova em Philip Roth. Poucas diferenças culturais serão tão marcadas como a que se verificava há poucas décadas entre um judeu nova-iorquino e um WASP de Boston; quando o protagonista judeu de Portnoy's Complaint se encanta por uma shiksa,* um dos motivos deste encanto é ela ser a primeira estudante a ir descalça para as aulas quando chega a Primavera. Esta desenvoltura, frequente nas chamadas culturas da culpa, é de todo inaceitável nas culturas da vergonha como as do Sul da Europa; e inaceitável por maioria de razão numa cultura que é ao mesmo tempo da culpa e da vergonha como a que se personifica em Portnoy. O medo da plateia é mais forte que o temor de Deus.

No Sul da Europa, andar descalço na rua é motivo de vergonha. Parece mal. Os outros olham para nós e pensam que somos malucos. Ainda há uma geração ou duas, era sinal de pobreza, e nada é mais vergonhoso que ser ou parecer pobre. Andar descalço na rua, só nas procissões ou nos santuários marianos, por penitência; e, neste contexto, quase só as mulheres.


DAQUI