domingo, dezembro 14, 2014

Ensaio em Louvor da Nudez

Os corpos das mulheres: Marianne e a República

Parece incompreensível que algumas mulheres descubram os seios para se manifestarem politicamente. É possível que algumas elas próprias não consigam sempre explicar articuladamente a razão por que o fazem. 
E no entanto devemos-lhes, quando mais não seja a título de benefício da dúvida, a presunção de que o fazem por uma razão válida. Não podemos acusá-lasa priori de exibicionismo e muito menos desse neologismo reaccionário - "protagonismo" - com que se deprecia a veleidade plebeia de intervir na vida da Res Publica

Intervenção das Mulheres Sabinas de David contém já alguns dos significados políticos da nudez feminina. As mulheres que se interpõem entre os contendores estão mais nuas, vestidas, que o guerreiro nu em primeiro plano. O elmo  esboça o uniforme, mas a pose clássica completa-o. O gesto com que segura a linha horizontal do dardo tem a elegância impossível dos modelos de Helmut Newton

As Mulheres Sabinas prefiguram já a Liberdade de Delacroix. Não estão em pose estática, como o guerreiro clássico, mas em movimento livre. Os seios nus, o torneado do corpo, os bebés que erguem no ar, tudo se opõe à rigidez rectilínea das armas. O estilo do vestuário é o que ficou conhecido por Neoclássico ou Império, e que o mesmo David mostrou nos retratos de Madame Récamier: vestidos simples e soltos, cintura alta, nus os braços, os ombros e por vezes os pés; e os seios, muitas vezes, visíveis à transparência. No que respeita as élites, é uma moda revolucionária que se opõe às trabalhosas e incómodas complicações do barroco; é uma moda em que o eu íntimo transcende, porventura pela primeira vez desde a Antiguidade, a persona social e política construída a partir da roupa.
O Poder deixou, provisoriamente, de usar uniforme; a nudez nobre da Antiguidade pagã triunfou provisoriamente sobre o mais político e despótico dos movimentos artísticos e sobre a mais despótica das modas, que foram respectivamente o barroco e a estilo da corte de Luís XIV. Por um breve momento, antes que o vitorianismo repusesse os bons costumes com os espartilhos torturantes e as saias empecivas, a aristocracia coincidiu com a nobreza; e muitas mulheres das elites europeias puderam andar à-vontade em público.

E os homens? Também eles conquistaram com a Revolução o direito ao conforto e à simplicidade nobre no vestir. O Dandyism de Barbey D'Aurevilly e de Beau Brummel é também isto. E, ao contrário do que aconteceu às mulheres, não perderam a seguir a 1820 o que tinham conquistado. Nunca mais os homens se viram limitados pelos saltos altos ou pelas perucas do Ancien Régime.

A Liberdade que guia o povo na pintura de Delacroix não é tão irrealista como pode parecer. O vestido é de época, não causa estranheza. Quase se poderia tratar de Madame Récamier, movida pela paixão a levantar-se do divã neoclássico, pôr na cabeça uma boina frígia e vir para a rua sem se incomodar com a sujidade e o suor.

As Femen que hoje em dia se manifestam de tronco nu sabem, confusamente ou não, alguma coisa que os seus críticos não sabem. A actriz Fernanda Policarpo, ao figurar descalça a República, sabe o mesmo. A jovem que beija o polícia e assim revela o homem feito de carne que reside na carapaça oficial, também. E do mesmo modo as jovens que refutam com a brandura dos seios nus os elmos, os escudos high-tech e os bastões da polícia. O corpo humano é refractário à Razão de Estado. E são-no, por maioria de razão e révanche histórica, os corpos das mulheres.


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