Os corpos das mulheres: Marianne e a República
Parece incompreensível que algumas mulheres descubram os seios para se manifestarem politicamente. É possível que algumas elas próprias não consigam sempre explicar articuladamente a razão por que o fazem.
E no entanto devemos-lhes, quando mais não seja a título de benefício da dúvida, a presunção de que o fazem por uma razão válida. Não podemos acusá-lasa priori de exibicionismo e muito menos desse neologismo reaccionário - "protagonismo" - com que se deprecia a veleidade plebeia de intervir na vida da Res Publica.
A Intervenção das Mulheres Sabinas de David contém já alguns dos significados políticos da nudez feminina. As mulheres que se interpõem entre os contendores estão mais nuas, vestidas, que o guerreiro nu em primeiro plano. O elmo esboça o uniforme, mas a pose clássica completa-o. O gesto com que segura a linha horizontal do dardo tem a elegância impossível dos modelos de Helmut Newton.
As Mulheres Sabinas prefiguram já a Liberdade de Delacroix. Não estão em pose estática, como o guerreiro clássico, mas em movimento livre. Os seios nus, o torneado do corpo, os bebés que erguem no ar, tudo se opõe à rigidez rectilínea das armas. O estilo do vestuário é o que ficou conhecido por Neoclássico ou Império, e que o mesmo David mostrou nos retratos de Madame Récamier: vestidos simples e soltos, cintura alta, nus os braços, os ombros e por vezes os pés; e os seios, muitas vezes, visíveis à transparência. No que respeita as élites, é uma moda revolucionária que se opõe às trabalhosas e incómodas complicações do barroco; é uma moda em que o eu íntimo transcende, porventura pela primeira vez desde a Antiguidade, a persona social e política construída a partir da roupa.
O Poder deixou, provisoriamente, de usar uniforme; a nudez nobre da Antiguidade pagã triunfou provisoriamente sobre o mais político e despótico dos movimentos artísticos e sobre a mais despótica das modas, que foram respectivamente o barroco e a estilo da corte de Luís XIV. Por um breve momento, antes que o vitorianismo repusesse os bons costumes com os espartilhos torturantes e as saias empecivas, a aristocracia coincidiu com a nobreza; e muitas mulheres das elites europeias puderam andar à-vontade em público.
E os homens? Também eles conquistaram com a Revolução o direito ao conforto e à simplicidade nobre no vestir. O Dandyism de Barbey D'Aurevilly e de Beau Brummel é também isto. E, ao contrário do que aconteceu às mulheres, não perderam a seguir a 1820 o que tinham conquistado. Nunca mais os homens se viram limitados pelos saltos altos ou pelas perucas do Ancien Régime.
A Liberdade que guia o povo na pintura de Delacroix não é tão irrealista como pode parecer. O vestido é de época, não causa estranheza. Quase se poderia tratar de Madame Récamier, movida pela paixão a levantar-se do divã neoclássico, pôr na cabeça uma boina frígia e vir para a rua sem se incomodar com a sujidade e o suor.
As Femen que hoje em dia se manifestam de tronco nu sabem, confusamente ou não, alguma coisa que os seus críticos não sabem. A actriz Fernanda Policarpo, ao figurar descalça a República, sabe o mesmo. A jovem que beija o polícia e assim revela o homem feito de carne que reside na carapaça oficial, também. E do mesmo modo as jovens que refutam com a brandura dos seios nus os elmos, os escudos high-tech e os bastões da polícia. O corpo humano é refractário à Razão de Estado. E são-no, por maioria de razão e révanche histórica, os corpos das mulheres.
DAQUI