quarta-feira, dezembro 17, 2014

Ensaio em Louvor da Nudez

Da nudez sagrada

Não são muitos os profetas nus no Antigo Testamento, nem numerosos os santos nus na hagiografia católica. Os que há, porém, chegam para traçar um perfil que os situa na tradição mística, na relação directa com Deus, ou seja: em pleno sagrado mas em larga medida fora da religião, que é a expressão social do sagrado. O profeta Isaías e Saul, pregando nus, descartam o uniforme da sua identidade social para melhor afirmar a inspiração divina que recebem sem a mediação de qualquer estrutura religiosa - leia-se, sem a mediação de qualquer autoridade humana. Do mesmo modo 
os eremitas dispensam a roupa. Para que precisa de roupas Santa Maria Egipcíaca no deserto? Melhor deixar apodrecer as vestes que levou consigo e deixar que o seu cadáver seja encontrado nu.

Diz-se que Santa Isabel de Turíngia professou nua, e há pinturas mais ou menos imaginativas desse momento. Lenda ou facto, esta narrativa articula-se bem com a mentalidade da Alemanha devota em inícios do Século XIII. Mais uma vez - poucos santos se deram tanto como Isabel à disciplina e à penitência - a nudez aparece associada, pelo menos na imaginação popular, a ascese extrema.
Esta associação não é exclusiva do cristianismo. É muito mais evidente no jainismo, por exemplo: a ponto de a religião contaminar o sagrado quando centenas de santos homens se juntam, nus e cobertos de cinzas, em cerimónias públicas. 
As religiões preferem, em geral, confinar a nudez sagrada aos desertos e às grandes solidões, tanto mais que pode ser substituída sem perturbação social pelos pés nus, que são ascese suficiente para o dia-a-dia e, por acréscimo, um símbolo de submissão a Deus. Moisés retirou as sandálias no Monte Sinai porque se achava em terreno sagrado; pelo mesmo motivo se descalçam os hindus nos templos, os muçulmanos nas mesquitas e católicos nas procissões.
Mas
 não foi só por ascese e submissão que Teresa de Ávila se descalçou. Estaria também a desnudar-se, como uma mulher apaixonada, perante o seu Senhor e Amante; e descalçar as freiras sobre quem tinha autoridade foi um acto de gestão e de política destinado a eliminar a segregação social entre monjas ricas e pobres, nobres e plebeias, senhoras e servas. Esta segregação exprimia-se nos hábitos que só se distinguiam de vestidos de corte pela cor e por algum discreto acessório. Mas nenhum trajo de corte sobrevive enquanto identificador social à remoção do calçado que lhe corresponde; e muito menos à remoção dos sapatos de salto alto que eram, no século XVI, prerrogativa ostentatória da nobreza. Privadas destes, as freiras ricas ficaram na mesma nudez a que já estavam habituadas as irmãs que as serviam: nuas sem os seus saltos altos como Lady Godiva sem as suas jóias.


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