segunda-feira, dezembro 08, 2014

Treta da semana (passada): o cérebro e a verdade.

Num post sobre dez questões aos “evolucionistas”, o Mats pergunta «Se, segundo o neo-Darwinismo, nós mais não somos que uma combinação arbitrária de matéria, energia e processos aleatórios [...] então como é que alguém pode confiar no que eles chamam de “pensamentos racionais” de modo a que estes correctamente lhes indiquem a veracidade do que quer que seja?»(1). A afirmação de que somos uma combinação arbitrária de processos aleatórios é falsa. Os processos que decorrem em nós não são aleatórios; o efeito de uma proteína, membrana ou ácido nucleico está bem determinado pela natureza física de cada molécula. E a teoria da evolução não propõe que estes sistemas sejam uma criação arbitrária. Um problema dos criacionismos, do mais assumido ao mais disfarçado, é ter de presumir que a vontade de um criador omnipotente, omnisciente e inimaginavelmente maior do que nós o levou a criar-nos tal como somos sem qualquer necessidade que o forçasse a isso. É demasiada presunção para a evidência disponível. Mas a evolução não é arbitrária. É como uma avalanche. Nos detalhes, é caótica e imprevisível mas, a uma escala maior, tal como a gravidade e a geometria do terreno determinam por onde a neve escorrega, a selecção natural e o ambiente também forçam o caminho de cada linhagem. Por isso, soluções úteis para problemas comuns, como raízes, olhos, mandíbulas, pernas ou asas, evoluíram independentemente várias vezes. 

O nosso corpo e o nosso cérebro não surgiram por mecanismos arbitrários ou aleatórios. Surgiram por quatro mil milhões de anos de aperfeiçoamento da arte de ter mais sucesso reprodutivo do que o vizinho. Isto levou a uma enorme diversificação de soluções, da bactéria ao eucalipto e ao mosquito, entre as quais está a nossa de usar um cérebro grande para se adaptar a situações diferentes. Isto traz-nos, essencialmente, ao argumento de Plantinga contra o naturalismo. Segundo Plantinga, o que podemos esperar da evolução será apenas um cérebro que nos dá crenças úteis para o nosso sucesso reprodutivo mas não necessariamente crenças verdadeiras. No entanto, a evolução dos nossas capacidades cognitivas não decorreu apenas sob pressão para um cérebro poderoso. Outra pressão importante foi a de ter um cérebro barato. 

Se bem que um cérebro já pronto à nascença seja uma opção viável em organismos intelectualmente mais simples, para mamíferos, e especialmente para os primatas, isso seria demasiado dispendioso. Por isso, o cérebro de um humano recém-nascido é quase uma massa amorfa de neurónios. Há uma organização grosseira, ditada pelos genes e pelo desenvolvimento embrionário, mas os detalhes estão omissos. Nos primeiros meses nem sequer conseguimos controlar os membros. Mas todos os neurónios são capazes de formar ou eliminar ligações conforme os estímulos que recebem e, assim, adaptar o cérebro às regularidades nos padrões sensoriais. Isto não garante crenças rigorosamente verdadeiras mas a adaptação às correlações na interacção com o ambiente força alguma correspondência entre os modelos neuronais e o ambiente que os moldou. Se aprendemos a atirar pedras atirando pedras, a ideia que formamos da relação entre a trajectória e a força não pode ficar muito longe da realidade que imprimiu no nosso cérebro essa noção durante o treino. 

No entanto, Mats e Plantinga estão correctos num ponto importante. A evolução de um cérebro geneticamente barato – que, por isso, se tem de adaptar ao ambiente para aprender – força os modelos mentais a corresponderem aproximadamente à verdade mas não os obriga a corresponder exactamente à verdade. E é precisamente isto que observamos. Sentimos a pedra como sólida e maciça mas, na realidade, trata-se da repulsão eléctrica entre nuvens de electrões na nossa mão e na pedra, ambas feitas de vazio salpicado de pequenas partículas. Parece-nos que a pedra está imóvel mas todos os seus átomos se agitam continuamente. Temos ideia de que a velocidade e posição da pedra, como as de qualquer objecto, são atributos independentes e bem definidos. Não é verdade. São apenas distribuições de valores possíveis e estão interligados de tal forma que estreitar a distribuição de um alarga a distribuição do outro. Durante quase toda a nossa história o cérebro enganou-nos acerca da realidade, dando-nos ideias aproximadamente correctas mas fundamentalmente erradas. 

Só nos últimos séculos é que começamos a contornar os defeitos do nosso intelecto delegando em ferramentas boa parte do processamento dos dados. Medindo com relógios, réguas e espectrómetros em vez de “a olho”. Quantificando com álgebra, de forma algorítmica e mecanizada, em vez de nos guiarmos pela intuição. Construindo penosamente modelos simbólicos, parcialmente ininteligíveis, mas que podem ser testados e adaptados à realidade com rigor. Foi assim que chegámos onde estamos agora. Não é de admirar que haja criacionistas como o Mats. O Génesis foi escrito com o conhecimento intuitivo de uma tribo antiga e mesmo à medida das limitações do nosso cérebro. Milhares de anos, criação inteligente, homem feito do barro e essas coisas. Isso é fácil de digerir. A realidade que a ciência nos revela não é algo para o qual o nosso cérebro esteja preparado. Um universo com treze mil milhões de anos. Quatro mil milhões de anos de evolução biológica. A relatividade do tempo. A mecânica quântica. Qualquer criança percebe facilmente que a pedra é sólida mas vai precisar de décadas de treino para perceber o que a pedra realmente é e, no fim, terá apenas uma ideia abstracta daquilo que as equações lhe dizem enquanto o cérebro continua a insistir no erro inicial. Como diria Jack Nicholson, nós não conseguimos lidar com a verdade. 

1- Mats, 10 questões que todo evolucionista tem que saber responder.


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