terça-feira, dezembro 16, 2014

Treta da semana (passada): ”Poder ao povo”

Sempre que saem os rankings das escolas ressurge a ideia de privatizar todo o sistema de ensino subsidiando as despesas com a educação. Por exemplo, «A solução passa [...] por dar "poder ao povo": se o Estado deixasse de financiar directamente as suas escolas (que, como as privadas, teriam de cobrar uma propina), e em alternativa desse a todo e cada pai sem rendimentos suficientes os meios para os seus filhos acederem à escola que preferissem (privada ou detida pelo Estado), nenhuma escola que não fosse reconhecida como boa por um número suficiente de pais poderia continuar a operar» (1) 

Em geral, sou a favor deste tipo de medidas. É por isso que defendo um rendimento básico incondicional. O dinheiro e um mercado são a melhor forma de transmitir informação acerca do que cada um quer e, por isso, em vez de se andar a distribuir comida ad hoc, a organizar campanhas para ajudar os pobrezinhos e a dar subsídios de pobreza, devia-se simplesmente dar um rendimento garantido a cada pessoa, fosse quem fosse, para ajudar a comprar o que precisassem. 

Mas isto depende de uma premissa crucial. O mercado tem de estar limitado pela procura. Só assim poderá responder adequadamente. Se dermos dinheiro a toda a gente, quem não tinha dinheiro para comprar pão passa a poder comprar pão porque o aumento na procura faz aumentar a oferta. Problema resolvido. Mas só nestas condições. Se houvesse uma guerra e não fosse possível fazer pão suficiente para satisfazer toda a procura, dar dinheiro não ajudaria os pobres porque o mercado iria responder subindo o preço. Os ricos continuariam a açambarcar o pão e os pobres teriam de comer relva. Nesse caso, é preciso racionar para que todos recebam uma parte justa. Isto é ineficiente e traz imensos problemas com aldrabices e mercado negro mas é a solução menos má quando o mercado está limitado na oferta. 

É precisamente isto que se passa em serviços como os da saúde e educação. Fazer boas escolas não é como fazer um papo-seco. Exige anos, ou décadas, de investimento sustentado em formação e na criação das comunidades de professores que trabalham em cada escola. Este é um aspecto importante que tem sido muito descurado. A qualidade do ensino não depende apenas da qualidade individual dos professores mas também, e bastante, da forma como os professores de uma escola trabalham em conjunto. Para que a equipa funcione bem, é preciso tempo e estabilidade. Reorganizações constantes, incertezas nas colocações e a trapalhada que tem havido degradam muito a qualidade do ensino. 

Por isso, num mercado de ensino, a oferta demora muito tempo a responder à procura. Mas os pais com o “cheque ensino” vão querer a melhor escola que isso lhes pagar naquele momento e não ao fim de dez anos de investimento. O resultado é que o mercado vai ajustar apenas o que pode ajustar rapidamente, que é o preço, enquanto que a instabilidade no investimento vai degradando a maioria das escolas, exceptuando apenas as escolas dos mais ricos. Que continuarão a ser apenas para os mais ricos. 

Outro problema é o dos incentivos. Com as padarias basta alguma fiscalização das condições de higiene e da qualidade dos ingredientes para alinhar o interesse do produtor, que é ganhar dinheiro, com o do consumidor, que é comer bom pão. Nas escolas isto é muito mais difícil. Práticas como a inflação de notas (2) ou a selecção de alunos são praticamente impossíveis de regular e permitem às escolas aparentar maior qualidade do que realmente têm. Quando é trivial vender gato por lebre o mercado do coelho à caçador funciona mal. Nestas condições, o dinheiro deixa de cumprir o papel importante de guiar o produtor de acordo com as necessidades do consumidor. 

Finalmente, há um problema fundamental na identificação do valor da educação. A ideia do mercado livre da educação presume que a educação tenha valor como bem privado. Algo que eu compro para mim ou para os meus filhos porque tem valor para mim ou para os meus filhos. Esta premissa, ainda que implícita, é necessária para justificar a liberalização deste mercado para que cada um compre de acordo com o valor que atribui à mercadoria. Mas o benefício que cada um tira da educação não vem apenas da sua educação ou da educação dos seus filhos. Vem também da educação de todos os outros. Socialmente, a educação tem um impacto enorme na criminalidade, na inovação, na produtividade, no ambiente, na qualidade de vida e até no funcionamento da democracia e das instituições públicas. Muito mais importante do que poder escolher para que escola vão os meus filhos é ter um sistema que vá melhorando o mais possível a formação de toda a gente com quem temos de conviver. 

Infelizmente, as ideologias dominantes são muito influenciadas por quem tem dinheiro suficiente para não ter de ir ao supermercado, andar em transportes públicos ou, em geral, contactar com o zé povinho. Para esses, a educação dos outros tem muito menos benefícios. Pode até ser indesejável. Suspeito que seja daí que se vai propagando a ideia da educação como uma mercadoria em vez de um bem público. 

1- Económico, Bruno Alves, Poder ao povo.
2- Público, Notas inflacionadas das privadas permitem ultrapassar até 450 colegas


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