O Banco Central da Suíça
surpreendeu ontem ao anunciar o fim da ligação do franco ao euro. O “peg” do
franco suíço ao euro era uma espécie de cordão umbilical que ligava os suíços à
moeda única e remontava à década de 70. Nessa altura, os suíços já tinham de
combater um franco forte e impuseram não só taxas de juro negativas, mas também
um tecto ao câmbio face ao marco alemão. Em 2011, novamente para evitar a
sobrevalorização da moeda e para evitar o contágio da crise do euro, a Suíça
voltou a colocar um travão à valorização da moeda (1,20 francos por cada euro)
que ontem surpreendente deixou cair.
É um sinal claro de que os helvéticos estão a antecipar que na
próxima semana o Banco Central Europeu (BCE) vá anunciar um gigantesco plano de
compra de dívida que irá inundar o mercado de euros. E os suíços, cujas
reservas de moeda estrangeira mais do que duplicaram nos últimos três anos,
sabem que não podem aguentar a qualquer custo um câmbio com uma aba fixa e,
como tal, resolveram abandonar o “peg”. Para evitar que haja uma corrida
excessiva ao franco, que poderia ser altamente prejudicial para as empresas
exportadoras como a Swatch ou a Nestlé, o Banco Central colocou a taxa de juro
negativa em 0,75%. Não serviu de muito. O franco suíço, visto como moeda de
refúgio, chegou ontem a disparar quase 30% face ao euro.
“É uma clara capitulação”. Foi assim que reagiu Jeremy Cook, do
World First, em declarações ao Guardian: “A pressão e a
crença de que o BCE vai lançar na próxima semana um programa de compra de
obrigações – provocando uma desvalorização ainda maior no euro – foi o
suficiente para que o banco suíço saísse do caminho”. Este economista diz que
“ninguém consegue ganhar quando se coloca à frente de um comboio em andamento”.
Já se percebeu que Mario Draghi quer colocar o comboio do euro a
andar a todo o vapor e já na próxima semana deverá anunciar, para desconsolo
dos alemães, um ambicioso plano de compra massiva de dívida pública, para
aliviar os balanços dos bancos da região e injectar dinheiro na economia. Oquantitative easing significará
atirar toda a lenha para a fogueira. Resta saber se é desta que a economia
europeia regressa aos carris e afasta a ameaça da deflação, ou se é desta que
descarrila de vez.
Esta semana, o Tribunal de Justiça Europeu veio desobstruir o
caminho ao BCE, afirmando que o Banco Central tem toda a legitimidade para
fazer programas de compra de dívida como o Outright Monetary Transactions (OMT)
que foi lançado em 2012. O OMT acabou por nunca ser activado, mas só a sua mera
existência (e as palavras de Mario Draghi de que tudo faria para defender o
euro) funcionou como escudo para proteger a moeda única e aliviar os juros da
região.
Mas o OMT tinha um pecado original: foi feito à medida da
Espanha e da Itália. Predispunha-se a comprar dívida soberana apenas dos países
que estivessem sujeitos a algum tipo de programa acordado com as instituições
europeias e que tivessem um acesso garantido e regular aos mercados. Portugal e
Grécia, na altura sem acesso aos mercados, estavam automaticamente proscritos.
O novo programa que será anunciado pelo BCE poderá padecer do
mesmo problema se se confirmar que apenas comprará dívida com um rating acima
de investment grade, o que deixará novamente de
fora os países periféricos do euro. Quem defende esta opção argumenta que
Portugal e Grécia acabarão por beneficiar indirectamente quando os juros dos
países beneficiados pelo programa caírem para terreno negativo. Nesse cenário,
os investidores voltariam a procurar dívida portuguesa e grega por terem
rendibilidades positivas. Quem defende esta teoria está a dizer que os grandes
países do euro farão um grande banquete à custa do BCE e pode ser que sobre
alguma migalha para países como Portugal e Grécia.
Aliás, esta tentação de puxar pela Europa a duas velocidades e
esta teoria das migalhas também se aplica claramente à flexibilização das
regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) que foi decidida esta semana
e que só permite fechar os olhos à derrapagem do défice – pela via do
investimento e do plano Juncker – se os países em causa estiverem fora dos
procedimentos por défices excessivos. Os defensores desta flexibilização, feita
à medida da Itália e da França, defendem que países como Portugal e Grécia,
apesar de não poderem beneficiar no imediato, irão ganhar pela via das
exportações. Quando a França e a Itália descolarem, vão comprar mais pastéis de
nata a Portugal e queijo feta à Grécia. Migalhas, digo eu.
É a percepção desta tentativa de perpetuar uma Europa a duas
velocidades, uma Europa de filhos e enteados, que vai levar a que, na próxima
semana, mais de 30% dos gregos votem num partido de esquerda radical para
governar o país. Merkel já terá ameaçado: se o Syriza ganhar as eleições, a
Grécia provavelmente salta borda fora do comboio europeu. A Alemanha que
anunciou esta semana que o seu PIB cresceu 1,5% em 2014, que o défice foi de
zero, algo que já não acontecia desde 1969, e que a taxa de desemprego caiu
para um mínimo histórico de 6,5%. Alexis Tsipras já respondeu a Merkel: se a
Grécia sair, pode ser o fim do euro. Claro que a ameaça de Tsipras faz lembrar
aquela anedota "da formiga que está a atravessar a linha do comboio e fica
com o pé preso nos carris. Depois de um esforço e a ver o comboio aproximar-se
desiste e diz: 'Que se lixe, se descarrilar, descarrilou'..." A Europa não
vai descarrilar por causa da Grécia, que representa apenas 2% do PIB da região.
E a Grécia também não irá desaparecer se abandonar o euro. Tal como na Suíça,
ao final do dia, tudo se resume a uma questão de câmbios. Um regresso e uma
desvalorização do dracma, como explicava ontem Hans-Werner Sinn do Ifo ao Diário Económico, iria dar
competitividade às empresas gregas, os gregos deixariam de ter dinheiro para
importar, voltariam a produzir e a construir novas fábricas. Quando chegarmos todos
à conclusão que o projecto europeu se resume a uma questão cambial, é porque
terá chegado a altura de acabar com ele.