quinta-feira, janeiro 22, 2015

Treta da semana: limites

A liberdade de expressão é um direito simples de compreender. É o direito de não ser forçado a calar o que se quer dizer. É um direito negativo, como o direito de não ser torturado, de não ser violado ou de não ser preso, porque é um direito que se garante simplesmente deixando a pessoa em paz. Não é preciso fazer nada por alguém para garantir a sua liberdade de expressão. Basta não o castigar pelo que exprime. No entanto, como qualquer direito, tem de acabar na fronteira a partir da qual infringiria outros direitos tão ou mais importantes. Por isso, o direito de me exprimir por gestos não me autoriza a bater nos outros, o direito de falar não me autoriza a burlar ou a ameaçar e o direito de escrever não me autoriza a fazer denúncias falsas. Em todos estes casos podemos identificar um direito que seria desrespeitado se permitíssemos à liberdade de expressão ultrapassar estes limites, como o direito à integridade física, à auto-determinação e a não ser perseguido por crimes que não se cometeu, por exemplo. E em todos esses casos podemos identificar também a fronteira onde acaba um direito para não interferir no outro. 

No entanto, dizer que a liberdade de expressão é um direito fundamental só que não se pode insultar é análogo a dizer que a violação é condenável mas não se pode andar vestido de forma provocante. Primeiro, porque ambos os casos deixam deliberadamente vaga a fronteira que insinuam. Não é claro se defendem que a violação passa a ser aceitável por a vítima vestir uma mini-saia ou se é legítimo coagir alguém ao silêncio para evitar que outros se sintam insultados. Em segundo lugar, ambos pretendem limitar um direito importante para a autonomia do indivíduo em favor de algo que, em rigor, não passa de um capricho. O direito de não ser silenciado e o direito de não ser forçado a ter relações sexuais são parte do que permite a cada pessoa ser ela própria em vez de um mero objecto da vontade dos outros. Este respeito pela autonomia do indivíduo tem de ser uma preocupação ética fundamental. Se bem que isto inclua reconhecer que cada um tem o direito de se sentir ofendido ou provocado com o que bem quiser, este direito só se estende até colidir com os direitos dos outros. Tal como o meu direito de me sentir provocado não me autoriza a violar quem quer que seja, também o meu direito de me sentir ofendido não me autoriza a fazer calar ninguém. Eticamente, a ideia de limitar a liberdade de expressão para proibir a ofensa, o escárnio ou o ridículo não tem fundamento. 

Mesmo numa perspectiva prática, é fácil de ver as vantagens em permitir estas formas de expressão. Eu e o Papa podemos coexistir pacificamente numa sociedade que me permita dizer que o Papa é estúpido e que lhe permita a ele dizer que o estúpido sou eu. O exercício deste direito por cada um de nós não impede o outro de exercer direitos equivalentes. Mas se adoptarmos a receita que o Papa sugeriu, de agredir quem nos insulta, deixamos de poder coexistir de forma civilizada e caímos na bestialidade da lei do mais forte. 

Outra vantagem da liberdade de insultar e ridicularizar é ser selectivamente corrosiva de más ideias. Quem tentar ofender os físicos ridicularizando a termodinâmica ou a teoria da relatividade irá apenas fazer figura de parvo ou revelar a sua ignorância. Em contraste, é muito fácil ofender quem acredita que o criador do universo encarnou num palestiniano para fazer meia dúzia de milagres e assim nos indicar que quando morrermos podemos ir para o céu. Essa ideia é tão descabida e ridícula já de si que qualquer piada que se faça vai ofender. Quando o rei vai bem vestido, dizer que ele vai nu é ridículo. É só quando todos se esforçam por ignorar o abanar evidente dos seus testículos engelhados que a mais leve menção de algo “ofensivo” arrisca desmoronar o embuste. Não admira por isso que pessoas como o Papa sejam tão avessas à liberdade de ridicularizar e ofender, principalmente quando o alvo são crenças religiosas. 

Por causa desta corrosão selectiva das tretas, nenhum regime autoritário pode permitir que os seus cidadãos sejam livres de ofender e ridicularizar o que quiserem. Nenhum Hitler, Estaline ou Kim se aguentaria no poder se o insulto e o escárnio fossem permitidos. Logo por isso já se justifica prezarmos esta liberdade como uma das mais importantes da nossa civilização. É o canário na mina. É a primeira a morrer quando as coisas começam a dar para o torto, e é de desconfiar sempre que alguém defende que o respeitinho é mais importante que a liberdade de dizermos o que nos vai na cabeça.


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