segunda-feira, fevereiro 16, 2015

O poder da esmola


A miséria e os novos barões da pobreza. Uma economista, Cláudia Joaquim, analisou dados oficiais da Segurança Social e chegou a conclusões interessantes, chamemos-lhes assim.


Comecemos pelas prestações sociais não contributivas. Entre 2010 e 2014, com o desemprego real e a pobreza sempre a aumentarem, o número de beneficiários do RSI diminuiu para menos de metade (-60%), de 526 mil para  menos de 211 mil, o de beneficiários de abono de família foi reduzido em mais de um terço, de mais de 1,8 para menos de 1,2 milhões (-e o de beneficiários do complemento solidário para idosos em proporção aproximada, de 246,6 mil para 171,3 mil. Ao mesmo tempo que reduziu prestações sociais, o Governo  aumentou o financiamento a instituições caritativas de tal forma que, números do Ministro da Solidariedade Social divulgados na semana passada no Parlamento, o número de cantinas sociais aumentou de 60 para 850, ou seja, nada mais nada menos que um aumento de 1316%.


Este contraste torna-se ainda mais interessante se conjugado com outros dados. O Estado paga, no máximo, 178,15 euros por titular de RSI; 89,07 por cada um dos outros adultos que existam no agregado; 53,44 por cada criança. Um casal com duas crianças recebe no máximo 374,1 euros de RSI. Para o Governo é este o montante mensal necessário e suficiente para uma família com esta composição satisfazer as suas necessidades básicas. Já às instituições particulares de solidariedade social (IPSS), o Estado paga 2,5 euros por cada refeição fornecida pelas cantinas sociais. Conforme o protocolo, podem as refeições ser fornecidas até duas vezes por dia, sete dias por semana. Quer isto dizer, que uma IPSS pode receber até 600 euros por mês para fornecer almoço e jantar a um casal com dois filhos e ainda cobrar 1 euro por refeição. Interessantíssimo.


Mas o interesse aumenta ainda mais se acrescentarmos a tudo isto outro contraste. Os critérios de acesso ao RSI foram sendo progressivamente apertados pela desconfiança, tantas vezes vertida em discursos que roçam a xenofobia,  pelo actual e pelo anterior Governo. A sua atribuição obedece a um processo burocratizado ao máximo e com fiscalizações levadas ao extremo que culmina na assinatura de um contrato de inserção social que implica todos os membros do agregado familiar. Pelo contrário, no reverso desta desconfiança movida aos pobres, há uma confiança absoluta na nova classe de caridosos beneméritos que nasceu à sombra do financiamento estatal. A Segurança Social é capaz de dizer que a 31 de Dezembro de 2014 estavam em vigor 845 protocolos referentes a cantinas sociais e que estes significavam 49.024 refeições diárias, mas é incapaz de dizer quantas pessoas delas usufruíam.


A economista que estudou esta medida do Programa de Emergência Social (PES) lançado em 2011 pelo Governo encheu-se de interrogações. Quais os critérios de selecção das instituições que assinaram protocolo com o Estado? Como se determinou a comparticipação pública? Como é monitorizada a medida, por exemplo, no que concerne ao número de beneficiários? Os critérios de acesso parecem-lhe relativamente genéricos. Os protocolos que analisou mencionam pessoas desempregadas, com baixos salários ou doenças crónicas, mas não há uma tabela. Cada instituição apura o que é carência económica e decide se determinada família é ou não apoiada pelos critérios que entenda e sem fiscalização.


Ou seja, tanto podem atribuir refeições a quem realmente delas necessite, como podem recusá-las com base no critério que entendam, como podem premiar com refeições quem delas não necessite mas satisfaça as exigências de quem passou a ter plenos poderes para administrar o poder que o Estado depositou na conta bancária da instituição respectiva, que não é pouco. Há 3 milhões de pobres a fazê-los sentirem-se grandes cada vez que estendam a mão a rogar-lhes a caridade que antes era direito. E são-no, enormes. Eles mandam na fome de quase um terço dos portugueses. Com o dinheiro dos nossos impostos.