segunda-feira, fevereiro 16, 2015

Treta da semana: o custo.

O nosso primeiro ministro e a comissão liquidatária que alcunharam de “governo” estão muito determinados a vender ao desbarato o que é de todos, a cortar na saúde e na educação, a salvar bancos falidos e a recusar qualquer negociação de juros. Quem lucra com a proibição dos Estados se financiarem directamente pelo Banco Central, fazendo de intermediário, tem de ter o seu rendimento garantido «custe o que custar»(1). O que Passos Coelho quer negociar são coisas como os medicamentos para a hepatite C. Salvar pessoas não é como salvar bancos. É importante, “mas não custe o que custar” (2). Mas este post não é sobre a desgraça de gente que alguns elegeram. É sobre a razão pela qual o medicamento nos sai tão caro. 

O sofosbuvir imita os nucleótidos que a polimerase de RNA do vírus da hepatite C usa para transcrever os genes virais, entalando-se na enzima e estragando a vida ao vírus (3). Como a Gilead detém as patentes desta droga, vende o medicamento a dezenas de milhares de euros apesar do custo estimado de produção ser de cerca de cem dólares para um tratamento completo de três meses (4). Excepto na Índia, que lhes negou a patente. Lá o preço é de 300 dólares (3,4). O David Marçal defende que o Estado português deve produzir o medicamento à revelia da patente e depois negociar preços e indemnizações (5). É uma solução. Mas eu proponho ir mais longe e acabar com este sistema de concessão indiscriminada de monopólios. 

As duas razões que normalmente se invoca para justificar as patentes são a “propriedade intelectual”, segundo a qual quem tem uma ideia é dono dessa ideia, e compensar o investimento privado para incentivar a inovação. Nenhuma delas se aguenta. Conceder direitos de propriedade sobre o processo de síntese e a aplicação de um medicamento resulta, na prática, em conceder a uma parte direitos de propriedade sobre o trabalho de outros que queiram sintetizar o medicamento ou usá-lo em tratamentos. Isto é como a escravatura. Ninguém pode ter direitos de propriedade sobre o que os outros fazem por sua conta. 

Justificar a patente como incentivo ou compensação também é um erro, em quase todos os casos*, porque as empresas vão sempre investir menos em investigação do que aquilo que lucram com o monopólio. Ou seja, o custo de conceder a patente será sempre maior do que o custo da investigação que a patente financia e que, de resto, é uma pequena fracção daquilo que o Estado tem de investir. Por exemplo, recentemente, investigadores da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, em colaboração com a EFACEC, desenvolveram uma técnica de soldadura de vidro útil no fabrico de certos painéis solares e venderam a «propriedade intelectual da tecnologia à empresa de energias sustentáveis ‘Dyesol’»(6) por cinco milhões de euros. Obviamente, a Dyesol comprou o poder legal de proibir toda a gente de usar esta técnica porque estimam ganhar mais do que isso com o monopólio. O resultado é que a FEUP, a Dyesol e a EFACEC lucram com o negócio em prejuízo do resto da sociedade, incluindo os contribuintes que pagaram gerações de investimento na criação de instituições como a FEUP, que financiaram a formação dos investigadores e a investigação fundamental necessária para este avanço e os muitos projectos que não deram resultado mas que foram igualmente necessários. A investigação científica não é como nos filmes, onde um tipo de bata branca dá umas voltas no laboratório e inventa o que queria inventar. Investigar é procurar soluções que, à partida, desconhecemos. É como ter umas centenas de polícias a percorrer um bosque à procura da arma do crime. Mesmo sabendo que, no máximo, só um deles a irá encontrar, não podemos dispensar os outros. Uma patente não compensa o esforço necessário para inovar. É apenas uma forma dispendiosa de premiar quem calhou dar o passo final para o lado certo. 

No caso dos medicamentos, o custo é ainda maior porque se paga também em vidas. Apesar do investimento privado no desenvolvimento de medicamentos ser avultado, é apenas uma pequena parte do investimento necessário em formação e investigação fundamental, e esse vem quase todo dos contribuintes. Desde os estudos epidemiológicos à determinação da estrutura das proteínas alvo, há imenso trabalho indispensável que as empresas aproveitam gratuitamente. Como nenhuma empresa privada investe mais em investigação do que lucra com o monopólio da patente, mesmo que eliminar as patentes implicasse estender o investimento público a esse passo final da investigação, sairia mais barato do que comparticipar os medicamentos vendidos a preço de monopólio. O investimento privado só é eficiente quando há concorrência livre. Se concedemos monopólios eliminamos a única vantagem que esta actividade tem para quem não lucre directamente com ela. 

As patentes acarretam ainda outros custos. Os tribunais, a fiscalização e os litígios constantes são pagos por toda a sociedade, directamente pelos impostos ou indirectamente nos preços. As restrições e despesa adicional que as patentes impõem à investigação prejudicam a inovação. Como incentivo, as patentes favorecem o desenvolvimento de produtos mais lucrativos em vez dos mais úteis. Um medicamento para o refluxo gástrico ou para controlar o colesterol é muito mais lucrativo do que um medicamento para a malária, e isso reflecte-se nas prioridades das empresas farmacêuticas. E há também o problema da origem desta legislação. As leis deviam ser criadas em representação de todos para defesa de direitos fundamentais ou do interesse da maioria. Mas estas leis são inventadas em tratados internacionais e negociadas à porta fechada entre gente com muito dinheiro e políticos à procura dele. O resultado, além de não ser democraticamente legítimo, é inevitavelmente prejudicial para todos os outros. 

* A excepção, rara, é a da inovação que pode ser mantida secreta durante muito tempo. Nesses casos pode compensar conceder um monopólio em troca da divulgação da invenção. Mas suspeito que os casos em que o segredo pode ser preservado e a patente convence a revelá-lo são suficientemente raros para nem valer a pena ter um sistema legal só para isso. 

1- TVI, 2012, Passos: «Vamos cumprir, custe o que custar»
2- Notícias ao minuto, "Deve-se fazer tudo para salvar vidas, mas não custe o que custar”
3- Wikipedia, Sofosbuvir
4- MSF, Gilead Denied Patent for Hepatitis C Drug Sofosbuvir in India
5- de rerum natura, O que acho que se deve fazer quanto ao medicamento da hepatite c.
6- EFACEC, FEUP e EFACEC comercializam tecnologia no valor de 5 milhões de euros


DAQUI