domingo, março 15, 2015

Boas razões

Muitos crentes, teólogos e filósofos da religião defendem que é racional acreditar na existência de Deus porque há boas razões para concluir que existe um deus. Discordo, porque não basta encontrar boas razões para que seja racional aceitar uma conclusão. Neste caso, até é irracional. 

Admito que há boas razões para concluir que existe um deus. A existência do universo é uma boa razão para concluir que algo o criou. A complexidade dos seres é uma boa razão para concluir que um ser inteligente os criou. Os relatos de milagres de Jesus dão boas razões para concluir que ele é mesmo a encarnação de um deus e haver milhões de cristãos é uma boa razão para crer que o cristianismo foi divinamente inspirado. No entanto, também os relatos, a fé e os livros sagrados dos muçulmanos dão boas razões para concluir que o deus verdadeiro é Alá e que o seu profeta é Maomé. Até há boas razões para concluir que o Pai Natal existe. Milhões de crianças acreditam nele, têm evidências empíricas de prendas que surgem debaixo da árvore e até a garantia dos seus pais de que foi o Pai Natal que as trouxe. 

O problema destas boas razões é serem uma amostra tendenciosa da informação relevante. Escolhendo a dedo, encontra-se boas razões para qualquer coisa, pelo que não é uma forma fiável de inferir conclusões verdadeiras. Por isso, em vez de partir de boas razões, o racional é partir de uma interpretação consistente de tudo o que percebemos ser relevante. É verdade que, como os dados não se interpretam por si, temos sempre de conjecturar algo para os poder interpretar. No entanto, é possível minimizar esta arbitrariedade. Em primeiro lugar, evitando a multiplicação de hipóteses ad hoc que só sirvam para proteger uma conjectura. Por exemplo, sabemos que o universo tem cerca de treze mil milhões de anos mas a humanidade, na sua forma moderna, só existe há umas centenas de milhares de anos. Sabemos também que praticamente todo o universo que observamos é hostil a seres como nós. Para compatibilizar isto com a tese de que o universo foi criado a pensar em nós é preciso hipóteses interpretativas como a do paraíso e da queda ou a de que esta é a melhor solução possível mesmo que não pareça. Essas hipóteses são suspeitas porque só surgem para resolver problemas com a tese inicial e não têm qualquer outra utilidade na interpretação dos dados. Em segundo lugar, devemos ter em conta a possibilidade de erro na criação dessas hipóteses interpretativas, dando preferência àquelas que, se forem falsas, mais facilmente o revelem. Por exemplo, hipóteses acerca de milagres ou magia devem ser relegadas ao fim da lista porque não as conseguimos testar. É sempre melhor optar por hipóteses testáveis pois só essas permitem corrigir erros. 

Portanto, a forma racional de concluir acerca do que existe não é escolhendo boas razões. É organizando a informação relevante numa interpretação consistente que dependa o menos possível de premissas gratuitas e assente o mais possível em hipóteses testáveis e informativas. Ou seja, por inferência à melhor explicação. E quando aplicamos este critério aos vários deuses propostos por aí, o ateísmo é inevitável. A ideia de que existe algum deus surge apenas para explicar as religiões e algumas crenças humanas. Mas, para isso, é uma má explicação. Exige seleccionar arbitrariamente uma minoria de crenças e religiões que se vai considerar correcta, porque são maioritariamente inconsistentes entre si, muitas das suas hipóteses interpretativas são tão vagas que não podem ser testadas e outras, por se revelarem inconsistentes com o que observamos, exigem novas hipóteses conjecturadas apenas para resolver essas inconsistências. Do criacionismo evangélico à teologia católica e do Islão à filosofia da religião, só se consegue encontrar boas razões para acreditar num deus ignorando a melhor explicação. 

A melhor explicação é a de que as religiões são um fenómeno psicológico e social. Esta explicação abrange toda a diversidade de superstições e religiões sem precisar de hipóteses ad hoc acerca de milagres e deuses e as hipóteses de que depende são mais susceptíveis de confronto com os dados. Por exemplo, enquanto a tese de que um livro sagrado foi inspirado por Deus é compatível com qualquer maravilha ou disparate, se o livro for obra humana o texto tem de se restringir ao permitido pela criatividade e conhecimento de quem o escreveu. Que é precisamente o que se constata nos textos sagrados. E isto não é só para a explicação das religiões. Tudo o que outrora se tentou explicar com deuses, desde as estrelas às doenças e a origem da vida, hoje explica-se melhor sem deuses. 

Qualquer crença em deuses pode ser apoiada em boas razões. Basta escolhê-las com cuidado. Mas a melhor explicação, que é muito menos arbitrária, implica o ateísmo.


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