sábado, março 07, 2015

"Isto não se faz”

"(...) a essência do totalitarismo, e talvez da burocracia, 
é transformar os homens em funcionários, 
em meras peças da máquina administrativa, 
ou seja, desumanizá-las."

Hannah Arendt, 1963.

Falando ou ouvindo certas pessoas, fico com a desagradável impressão de que não perceberam (ainda) que há (cada vez mais) pessoas que não têm, nem terão num futuro próximo, quaisquer meios materiais para sobreviver. De modo simples e cru: sendo-lhes retirada a comida que alguém lhes arranja a probabilidade de passarem fome é muito elevada.

Podem reproduzir números, ter visto "casos" na televisão mas, lá no fundo, não perceberam que a vida é um bem precioso (para alguns o bem mais precioso de todos) e que, numa sociedade civilizada, democrática, há situações, como essa, que não são toleráveis.

Talvez o leitor tenha ligado estes dois parágrafos à notícia que ontem andou pela comunicação social em que se dava conta que os serviços de finanças portugueses deram ordem de penhora a alimentos (sim, alimentos) doados (sim, doados) perto do final do prazo (que já não se vendem) a uma instituição particular de solidariedade social que recolhe aqui e ali para distribuir a quem precisa. E isto porque essa instituição não tem dinheiro para pagar coimas, juros, etc. de portagens que já pagou mas com atraso.

Perguntei: isso é possível? Sim é, foi a resposta de um jurista e mandou-me o artigo 216.º do Código de Diteito Tributário:

Execução contra autarquia local ou outra pessoa de direito público 1 - Se o executado for alguma autarquia local ou outra entidade de direito público, empresa pública, associação pública, pessoa colectiva de utilidade pública administrativa ou instituição de solidariedade social, remeter-se-á aos respectivos órgãos de representação ou gestão certidão da importância em dívida e acrescido, a fim de promoverem o seu pagamento ou a inclusão da verba necessária no primeiro orçamento, desde que não tenha sido efectuado o pagamento nem deduzida oposição no prazo posterior à citação. 2 - A ineficácia das diligências referidas no número anterior não impede a penhora em bens dela susceptíveis.
Depois de a notícia estar na rua, os serviços de finanças levantaram a penhora, o que não retira gravidade ao acto, talvez acrescente. Não foi, entendo eu, por questões de sensibilidade que o fizeram, mas para defender a sua imagem. Na verdade, a lei deve ser cumprida, mas as circunstâncias especiais em que vivemos, para as quais temos sido empurrados, deveriam pesar na decisão dos funcionários que a executam. Não sei com que consequências para eles (controlados como todos estamos, certamente, as haveria), o que sei é que “isto não se faz”. Cito a responsável por essa instituição particular de solidariedade social.

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