domingo, março 15, 2015

O gene português defeituoso

Quando falam do atraso português, alguns intelectuais tendem a analisar apenas o curto prazo. Outros autores, de forma mais ou menos velada, atribuem ao povo todos os males nacionais, como se houvesse um gene português defeituoso. Nem se apercebem da presunção com que falam. O tom de desprezo, impossível de encontrar em França em relação aos franceses, tem sido recorrente em Portugal, onde os nativos são descritos pela sua própria elite como manhosos e velhacos, incultos e pobres, mansos e cobardes. Estes retratos são falsos, mas repetem modelos comuns na nossa literatura.
Portugal nunca percebeu as razões de não ser respeitado pelas outras potências: a ideia do nosso atraso tem séculos e a figura do intelectual estrangeirado que se confronta com a choldra é uma constante em várias épocas. O poder foi invulgarmente centralizado em poucas famílias, que controlavam as diferentes instituições, corte, igreja, exército, banca e funcionalismo. As diferenças sociais permitiram que se instalasse o tráfico de influências, a necessidade de protecção, as invejas e a mediocridade.
Os privilegiados nunca precisaram de se esforçar muito, mas nos últimos 40 anos, com o fim do império e a integração europeia, a sociedade mudou de forma drástica. Em apenas uma geração, as mulheres emanciparam-se e as diferenças sociais esbateram-se. As pessoas são hoje muito mais instruídas, saudáveis e ricas do que eram há 40 anos. Hoje, é difícil dizer que o maior problema seja o fosso social ou que haja costumes invulgarmente machistas, o que torna mais impressionante a sobrevivência desta narrativa do povo defeituoso.
O atraso português deixou de ser tão evidente, mas permanece na nossa cultura e confirma a baixa auto-estima de quem olha para si próprio como incompreendido e melancólico. O que mais nos ficou do passado foi o provincianismo. O confronto com o exterior origina duas atitudes contraditórias: somos os melhores ou os piores. O que vem de fora é mal compreendido e muitas vezes mal intencionado, mas é também inimitável. Por outro lado, o que fazemos será puro génio ou não possui qualquer valor quando comparado com o que vem de fora. Este caldo de cultura inseguro e sem meio termo torna injusta a invisibilidade do país e, de forma paradoxal, cria uma mentalidade periférica. Enfim, já não somos o centro do império, mas ainda desconfiamos da Europa; estamos no meio do caminho, sem saber o que fazer.