segunda-feira, março 16, 2015

Treta da semana: a origem da superstição

Duarte Sousa Lara é padre católico, exorcista e autor do livro «Deus está a salvar-me ... e a libertar-me de todo o mal. Perguntas frequentes sobre o demónio e os exorcismos»(1). O livro é vivamente recomendado por Gabriele Amorth, exorcista da Diocese de Roma, presidente da Associação Internacional de Exorcistas e reputado exorcisador de milhares de casos de possessão demoníaca (2). Segundo este, as quarenta perguntas e respostas que Lara apresenta «São o fundamento da religião e, consequentemente, defesa contra o perigo de qualquer forma de superstição, a qual tem sempre origem no demónio».

Dada a importância do assunto, é natural que o autor disponibilize no site a ligação para a distribuidora, à qual podemos encomendar o livro por €9.85, entregue em cinco dias úteis. No entanto, é estranho que não disponibilize também o texto em formato electrónico. Seria de esperar que não sujeitasse a restrições de cópia as perguntas e respostas fundamentais à defesa contra o demónio. Pode alguém pensar que quer ganhar dinheiro à custa dos possuídos e arriscando a alma de quem não tenha dez euros para dar sem saber ao que vai ou que já tenha pouco espaço nos armários para mais livros em papel.

Mas outros textos do autor dão uma ideia do problema. No prefácio da tradução portuguesa do livro “A Virgem Maria e o Diabo nos Exorcismos”, Lara escreve, citando o catecismo da Igreja Católica, que:
«A existência dos seres espirituais, não-corporais, a que a Sagrada Escritura habitualmente chama anjos, é uma verdade de fé» e portanto não se encontra no âmbito das hipóteses ou opiniões teológicas. Alguns desses anjos, criados bons por Deus, liderados por Satanás, também chamado Diabo, «radical e irrevogavelmente recusaram Deus e o seu Reino», e portanto deve-se afirmar que «de facto, o Diabo e os outros demónios foram por Deus criados naturalmente bons; mas eles, por si próprios, é que se fizeram maus». (3)

Uma vez solidamente estabelecida a existência dos demónios «que se fizeram maus» pela evidência incontestável de alguém ter escrito que é mesmo assim, Lara enuncia também a importância de Maria nos exorcismos. Baseado «na Sagrada Escritura, no Magistério da Igreja, na experiência dos santos, nas reflexões dos teólogos [e em] palavras e reacções dos demónios durante os exorcismos», defende que «Maria acompanha-nos nos combates desta vida. Nos exorcismos “tocamos” a sua presença materna ao nosso lado e fazemos experiência da eficácia da sua intercessão.» Não sei se será uma das perguntas às quais responde no livro, mas ocorre-me questionar porque é que Maria só intercede na presença do exorcista. Ou até, indo mais longe, porque é que Deus só expulsa o demónio se o exorcista pedir a Maria que interceda. Parece um procedimento demasiado burocratizado para um ser supostamente omnisciente. Por outro lado, talvez partilhe a justificação com a opção de só divulgar as respostas a quem pagar o livro. Se bem que nem só de pão viva o homem, a palavra de Deus também não enche a barriga.

Para que a crítica seja mais construtiva, gostava de terminar com uma sugestão. Pelo que percebo, os exorcistas católicos estão na linha da frente de uma guerra de atrito que já dura há dois mil anos e não parece ter um fim em vista. Os exorcistas exorcizam, os demónios possuem, os exorcistas voltam a exorcizar e é uma gritaria e um gastar de água benta sem que a coisa se resolva. É preciso disseminar algo que proteja verdadeiramente as pessoas. Algo que faça à posse demoníaca o que o flúor na água faz às cáries ou que o iodo no sal faz ao bócio. Uma vacina contra demónios. E penso que encontrei um bom candidato, graças às palavras do padre Amorth. Não sei se a superstição terá mesmo sempre origem no demónio, mas suspeito que o demónio só consiga possuir quem for supersticioso e acreditar nessas coisas. Os ateus, pelo menos, parecem ser muito resistentes às investidas do mafarrico. Podem vomitar de esguicho se tiverem uma intoxicação alimentar, e alguns poderão dizer coisas menos simpáticas aos padres, mas nada daquelas coisas de rodar o pescoço uma volta inteira ou andar a gatinhar pelo tecto.

Fica então a sugestão. Se querem mesmo derrotar o cornudo e acabar de vez com este terrível flagelo, experimentem divulgar o ateísmo. Julgo que se protegerem as pessoas de todas as superstições, incluindo as vossas, o problema fica resolvido logo. Posso até deixar aqui a próxima edição do livro de perguntas e respostas de Sousa Lara, mais levezinho, sucinto e fácil de ler:
Estas coisas dos deuses e demónios, isto é verdade?
Não. É tudo treta.