sábado, maio 16, 2015

Serás pobre

Trabalhes ou estejas desempregado, serás pobre. É esta a mensagem subjacente às transformações que estão a ser feitas, em simultâneo, no mundo do trabalho e na protecção social no desemprego. É esta a sociedade de pobreza, com mais pobres e maior intensidade de pobreza, que está a ser construída de forma estrutural, porque o que se passa ao nível das remunerações salariais e da protecção social tem efeitos sobre todo o edifício económico, social e político. Uma sociedade que era já das mais desiguais antes da crise está a tornar-se mais desigual ainda.

Portugal caracteriza-se há muito por níveis salariais extremamente baixos quando comparados com a média europeia. Mas a "desvalorização interna" dos últimos anos mostra que termos salários que são pouco mais de metade da média dos salários na União Europeia (56,4%) não é ainda suficiente nesta corrida para o abismo do trabalho (quase) escravo. Nos últimos anos, além dos cortes salariais no sector público (26%) e no sector privado (13%), registou-se uma acentuada quebra dos salários nos novos contratos e nos contratos a termo (e mais no trabalho feminino do que no masculino). Assim, entre 2012 e 2013, "verificou-se uma travagem a fundo e os salários recuaram 1,9%, correspondendo agora a uma média de 808 euros mensais líquidos" ; e os trabalhadores que sofreram um corte maior, de 6% no último trimestre de 2013, foram os diplomados do ensino superior, apesar de continuarem a ter, em média, salários mais elevados [1] .

A confirmar esta percepção de que os novos empregos criados são cada vez mais trabalhos de miséria está a informação recente de que "os contratos de trabalho feitos de Outubro de 2013 para cá e que ainda estão em vigor apontam para um salário base de cerca de 581 euros brutos por mês" [2] . Isto é, os novos salários tendem a aproximar-se do salário mínimo nacional, ainda agora aumentado para os 505 euros mensais.

A construção desta pobreza laboral, que não é uma característica nacional mas neoliberal, assenta em vários factores, da emigração forçada (superior a 400 mil pessoas) às várias formas de desregulação do emprego. Nestas formas incluem-se as deslocalizações, a precariedade, o trabalho temporário e a tempo parcial, os estágios remunerados com fundos comunitários ou públicos, sem perspectivas de inserção no mercado de trabalho, ou ainda o (auto)emprego através da criação de empresas de desespero, as quais, mascaradas por uma retórica de "empreendedorismo individual", são em geral uma via para o sobreendividamento pessoal.

É este admirável mundo novo da emigração, da precariedade, do biscate, do estágio perpétuo e do endividamento para poder trabalhar que facilita a aceitação de remunerações cada vez mais miseráveis. O exército de reserva dos desempregados é hoje inseparável do exército de reserva dos trabalhadores pobres e das remunerações baixas. As estatísticas que usámos durante décadas terão de ser muito afinadas para traduzirem bem as novas realidades que as políticas sociais e de emprego devem combater.

Quando organismos como o Instituto Nacional de Estatística (INE) apresentam os dados do desemprego (13,7% no primeiro trimestre de 2015) causam entre os cidadãos uma certa ambivalência. Porque, sendo já de si elevadíssimos, percebe-se que não contam com realidades bem conhecidas:   os que já desesperam das grilhetas da apresentação quinzenal no Centro de Emprego, de onde não vem qualquer trabalho; os que emigraram e continuam a pensar voltar mal arranjem trabalho cá; os que trabalham muito menos horas (e semanas, e meses…) do que estão disponíveis para trabalhar; etc.

É por isso importante surgirem estudos que ajudem a compreender melhor a realidade. Exemplo disso é o estudo do "Barómetro das Crise", onde se afirma que, "tendo em conta as diversas formas de desemprego, o subemprego e estimativas prudentes sobre a situação laboral dos novos emigrantes, a taxa real de desemprego poderia situar-se, no segundo semestre de 2014, em 29% da população ativa" [3] . De facto, não só os números da criação de emprego são francamente decepcionantes (pouco e mau emprego), como os níveis do desemprego, em vez de descerem substancialmente, mantêm-se perigosamente estáveis a níveis muito elevados (muito e mau desemprego).

Regressemos à ideia de que as políticas actuais generalizam a pobreza, tanto de quem trabalha como de quem está desempregado, por via de uma actuação simultânea no mundo do trabalho e na protecção social no desemprego. Se existe alguma racionalidade individual – que não colectiva – em aceitar trabalhos miseráveis ("é melhor que nada"), é justamente porque esse "nada" foi fabricado, a montante, nas políticas sociais, pela crescente desprotecção social, desde logo no subsídio de desemprego e demais prestações, ainda para mais num quadro de permanência de níveis muito elevados de desemprego de longa duração.

É este o papel político da desprotecção social dos desempregados. Quando temos, segundo dados do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), menos 100 mil empregos protegidos entre Dezembro de 2012 e Dezembro de 2014, e quando chegamos a taxas de absoluta desprotecção (sem subsídio de desemprego, nem subsídio social de desemprego inicial, nem subsídio social de desemprego subsequente) de quase metade dos desempregados "oficialmente" registados (46% no segundo trimestre, 49% no quarto trimestre de 2014) [4] , compreendemos que é um dos pilares do Estado social que está a ser destruído. Qual? O direito à protecção social no desemprego, condição fundamental para a igualdade de direitos e de oportunidades, direito que combate a pobreza protegendo todos os trabalhadores e a própria Segurança Social, ao impedir o abaixamento das contribuições gerais pela aceitação de quaisquer níveis remuneratórios.

Ainda para mais, a outra prestação social – o rendimento social de inserção (RSI), não criado especificamente para os desempregados e dependendo apenas da falta de rendimentos – que poderia aliviar dramáticas situações de pobreza, não tem acompanhado as necessidades decorrentes da crise e deixa crescentemente sem protecção desempregados que já esgotaram a duração do subsídio. É aqui que importa mexer, com carácter de urgência, para que o Estado social garanta níveis dignos de protecção social.

Se nem para defender o Estado social se conseguir implantar políticas robustas, como escolher pelo menos um dos outros vértices (o Tratado Orçamental ou a dívida pública actual) do "triângulo das impossibilidades da política orçamental", na expressão do economista Ricardo Paes Mamede, de cujo cumprimento terá de se abdicar para ser possível reverter a austeridade e o empobrecimento? 
10/Maio/2015

[1] Raquel Martins, "Licenciados sofreram a maior queda nos salários em 2013",  Público, 8 de Fevereiro de 2014.
[2] Catarina Almeida Pereira, "Empresas estão a contratar com salário-base de 581 euros", Jornal de Negócios, 26 de Março de 2015.
[3] "Barómetro das Crises n.º13", 26 de Março de 2015, www.ces.uc.pt/...
[4] Os números aqui referidos foram compilados pelo jornalista João Ramos de Almeida, a quem agradeço. 


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