SEGUNDA PARTE
§ 1.º - Das causas dos nossos erros: origem da propriedade
A determinação da verdadeira forma de sociedade humana exige a solução prévia da seguinte questão.
Não sendo a propriedade a nossa condição natural, como se estabeleceu? Como é que o instinto de sociedade, tão certo nos animais, faltou no homem? Como é que o homem, nascido para a sociedade, ainda não está associado?
Disse que o homem está associado de modo composto: ainda que a esta expressão faltasse justiça, o facto que ela me serviu para caracterizar não seria menos verdadeiro saber a engrenagem dos talentos e capacidades. Mas, quem não vê que esses talentos e essas capacidades se tornam, por sua vez, pela sua variedade infinita, causas de uma infinita variedade nas vontades que o carácter, as inclinações e, se assim ouso dizer, a forma do eu, ficam inevitavelmente alteradas: de maneira que na ordem da liberdade, assim como na ordem da inteligência, há tantos tipos como indivíduos, tantos originais quantas cabeças, cuios gostos, humores, inclinações, não podem necessariamente harmonizar-se, modificadas por ideias desiguais? O homem, pela sua natureza e instinto está predestinado à sociedade e a sua personalidade opõe-se a isso, sempre inconstante e multiforme.
Nas sociedades de animais todos os indivíduos fazem exactamente as mesmas coisas: um mesmo génio os dirige, uma mesma vontade os anima. Uma sociedade de animais é um conjunto de átomos redondos, curvos, cúbicos ou triangulares, mas sempre perfeitamente idênticos; a nua personalidade é unânime, dir-se-ia que um só eu os governa a todos. Os trabalhos que os animais executam, quer individualmente, quer em sociedade, reproduzem o seu carácter traço por traço: assim como o enxame de abelhas se compõe de unidades da mesma natureza e igual valor, assim o favo de mel é formado pela unidade alvéolo, constante e invariavelmente repetido.
Mas a inteligência do homem, destinada ao mesmo tempo para o destino social e para as necessidades da pessoa é de uma factura completamente diferente e é o que torna, por uma consequência fácil de conceber, a vontade humana prodigiosamente divergente. Na abelha, a vontade é constante e uniforme, porque o instinto que a guia é inflexível e é esse o único instinto que faz a vida, a felicidade e todo o ser do animal; no homem, o talento varia, a razão é indecisa, portanto, a vontade múltipla e vaga: procura a sociedade mas foge das dificuldades da monotonia: é imitador mas amoroso das suas ideias e doido pelas suas obras.
Se, como a abelha, cada homem trouxesse um talento formado ao nascer, conhecimentos especiais perfeitos, uma ciência infusa, numa palavra, funções que deveria exercer mas que fosse privado pela faculdade de reflectir e raciocinar, a sociedade organizar-se-ia por si própria. Ver-se-ia um homem trabalhar um campo, outro construir casas, este forjar metais, aquele talhar fatos, alguns armazenar os produtos e dirigir a distribuição. Cada um, sem procurar a razão do seu trabalho, sem se inquietar se fazia mais ou menos que a tarefa seguiria a ordem, traria o produto, receberia o salário, descansaria a horas e tudo isso sem contar, sem invejar ninguém, sem se queixar do distribuidor, que nunca cometeria injustiças. Os reis governariam e não reinariam porque reinar é ser prorprietárlo de pastagens, como dizia Bonaparte; e não tendo nada para comandar, pois cada um estaria no seu posto, serviriam mais de centros de ligacão que de autoridades e conselheiros. Haveria comunidade engrenada, não haveria sociedade reflectida e livremente aceite.
Mas o homem só se torna hábil à força de observações e experiências. Portanto, reflecte, visto que observar e experimentar, é reflectir; raciocina, visto que não pode deixar de raciocinar; reflectindo, ilude-se; raciocinando, engana-se; julgando ter razão, teima, estima-se a si próprio e despreza os outros. A partir daí isola-se, porque não poderia submeter-se à maioria senão abnegando da sua vontade e razão, quer dizer, renegando-se a si próprio, o que é impossível. E esse isolamento, esse egoísmo racional, enfim esse individualismo de opinião duram enquanto a verdade lhe não é demonstrada pela observação da experiência.
Uma última comparação tornará ainda mais sensível todos estes factos.
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