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sexta-feira, março 23, 2007

Crueldade e xenofobia envergonham e agitam o país afortunado

O escritor australiano Donald Horne pretendia que o título do seu celebrado livro, The lucky country [O país afortunado], significasse ironia. «A Austrália é um país afortunado dirigido por pessoas de segunda classe que compartilham da sua sorte», lamentou em 1964, descrevendo grande parte da elite australiana como infalivelmente falhos de originalidade, obcecados com a raça e avassalados pelo poder imperial e pelas suas guerras. Das aventuras do ópio da Grã Bretanha no século 19 à farsa actual dos Estados Unidos no Iraque, os australianos foram enviados para lutar contra povos longínquos com os quais não têm nenhuma disputa e que não oferecem nenhuma ameaça de invasão. Cresci aqui na convicção de que esta era uma “tradição sagrada”.

Mas então uma outra Austrália foi “descoberta”. Os únicos mortos de guerra que os australianos nunca tinham chorado foram encontrados justamente sob os seus narizes: aqueles que faziam parte de um notável povo indígena que tinha possuído e cuidado esta terra antiga durante milhares dos anos, depois lutado e morrido em sua defesa quando os britânicos a invadiram. Numa terra cheia de cenotáfios, nenhum lhes prestava homenagem. Para muitos brancos, o despertar era rude; para outros foi excitante. Nos anos 70, em grande parte graças ao breve, corajoso e subvertido governo trabalhista de Gough Whitlam, as universidades abriram os seus estudos a estas heresias e as suas portas a uma sociedade que Mark Twain em tempos identificou como «povoada quase inteiramente pelas ordens mais baixas». Uma história secreta revelou que, muito antes do resto do mundo ocidental, o povo trabalhador australiano tinha lutado por e conseguido um salário mínimo, um dia de trabalho de oito horas, pensões, benefícios para as crianças e o voto para mulheres. E agora havia uma diversidade étnica surpreendente; e tinha acontecido como por defeito; simplesmente não havia suficientes britânicos e “bálticos de olhos azuis” que quisessem vir.

Austrália não é notícia com frequência, tirando o críquete e os incêndios florestais. É uma pena, porque a regressão desta democracia social para um estado de medo e xenofobia fabricados é um objecto de estudo para todas as sociedades que reivindicam ser livres. No poder há mais de uma década, o primeiro ministro liberal, John Howard, vem dos rincões dos neocons da Austrália. Em 1988, anunciou que um futuro governo liderado por ele seguiria uma “Política de Uma Austrália”, um precursor infame do partido Uma Nação de Pauline Hanson, cujos alvos eram australianos e imigrantes negros. Os alvos de Howard foram similares. Um dos seus primeiros actos como primeiro ministro foi cortar 400 milhões de dólares australianos do orçamento dos assuntos aborígenes. «O politicamente correcto», disse, «foi demasiado longe». Hoje, os australianos negros têm uma das expectativas de vida mais baixas do mundo, e a sua saúde é a pior do mundo. Uma doença inteiramente prevenível, o tracoma – derrotada em muitos países pobres – ainda os cega devido às aterradoras condições de vida. O empobrecimento das comunidades negras, que pouco vi mudar ao longo dos anos, foi descrito em 2006 por Save the Children como «do pior que vimos no nosso trabalho em todo o mundo». Em vez de respeito político na forma de uma lei de direitos das terras nacionais, uma guerra de atrito legal foi empreendida contra os aborígenes; e as epidemias e os suicídios de negros continuam.

Howard regozija-se na sua promoção de “valores australianos” – um subserviência muito australiana aos “valores” açucarados do poder estrangeiro (americano). O primeiro ministro, menino querido de um grupo de supremacistas brancos que zumbem em torno de entrevistadores de rádio e da imprensa dominada por Murdoch, usou acólitos para atacar “o ponto de vista negro da história”, como se a matança massiva e a resistência dos australianos indígenas não tivessem ocorrido. O excelente historiador, Henry Reynolds, autor de The other side of the frontier [O outro lado da fronteira], foi completamente conspurcado, juntamente com outros revisionistas. Em 2005, Andrew Jaspan, um britânico recentemente nomeado editor do Melbourne Age, foi objecto de uma viciosa campanha neocon que o acusou de “reduzir” o Age a «outro Guardian [liberal]».

Acenar de bandeiras e um untuoso chauvinismo de mão-no-coração sobre o qual os australianos cépticos sentiam outrora uma saudável ambivalência são agora prática padrão nos desportos e em outros eventos públicos. Estes servem para preparar os australianos para o militarismo e a guerra renovados, como prescrito pela administração Bush, e para encobrir ataques sobre a comunidade muçulmana da Austrália. Proteste e pode estar a quebrar uma lei da sedição de 2005 desenhada para intimidar com a ameaça de prisão até sete anos. Descrito uma vez nos meios de comunicação como o «xerife-adjunto» de Bush, Howard não pôs objecções quando Bush, ao ouvir isto, o promoveu a «xerife para o sudeste asiático». Como um mini-Blair, ele enviou tropas e polícias federais para as Ilhas Solomão, Tonga, Papua Nova Guiné e Timor Leste. Em Timor Leste recém independente, onde os governos australianos se conluiaram com uma ocupação sangrenta de 23 anos por parte da Indonésia, a “mudança de regime” foi eficazmente executada no ano passado com a renúncia do primeiro ministro, Mari Alkatiri, que teve a temeridade de se opor à exploração unilateral de Canberra dos recursos do petróleo e do gás do seu país.

No entanto, é um homem, David Hicks, um perdedor espectacular na nova Austrália, que ameaça agora a fachada “afortunada” de Howard. Hicks foi encontrado entre os Taliban no Afeganistão em 2001 e entregue aos americanos a troco de um prémio por senhores da guerra apoiados pela CIA. Passou mais de cinco anos na baía de Guantánamo, incluindo oito meses numa cela sem luz solar. Foi torturado, e nunca acusado de algum crime. Howard e o seu Procurador Geral, Philip Ruddock, recusaram se mesmo a pedir o repatriamento de Hicks, como é seu direito constitucional, porque não há nenhuma lei australiana sob a qual Hicks possa ser acusado. A sua crueldade é de cortar a respiração. Uma campanha tenaz por parte do seu pai, Terry, inflamou uma espécie de vergonha pública que está a crescer. Isto já aconteceu antes na Austrália, tal como a marcha de um milhão de pessoas através da Ponte do Porto de Sydney exigindo justiça para os australianos negros, e a corajosa acção directa por jovens que forçaram o encerramento de infames e remotos campos de detenção para refugiados ilegais, com as suas celas de isolamento, pulverizações de gás lacrimogéneo (capsicum) e espancamentos. Os que procuram asilo e são apanhados nos seus barcos furados pela sempre vigilante Força de Defesa Australiana são agora encarcerados atrás das cercas eléctricas na minúscula Ilha do Natal a mais de 1.000 milhas do país afortunado.

Howard não enfrenta oposição real do condescendente partido Trabalhista. Os sindicatos, enfrentando um retrocesso do orgulhoso registro de direitos dos trabalhadores da Austrália e até 43 por cento de desemprego entre a juventude, agitaram se, e encheram as ruas. Mas talvez algo mais amplo e mais profundo esteja a vir de uma nação cuja auto-imagem mais duradoira e melancólica é a de desobedientes desordeiros (rebeldes). Durante a recente série de críquete Ashes, Ian Chappell, um dos capitães mais admirados da Austrália, saiu da cabina de relato quando Howard entrou. Após ter visto por si mesmo as condições numa prisão de refugiados, Chappell disse: «São seres humanos e não se pode simplesmente tratá-los desta maneira... na gíria do críquete era como fazer batota. Estavam a ser penalizados de forma fraudulenta depois de uma jogada válida».
John Pilger
http://www.infoalternativa.org/autores/pilger/pilger061.htm

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