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terça-feira, março 27, 2007

O Ritual

Amanhã lá (re)começa a conhecida faina das reuniões de avaliação de final de período. A última semana foi mais do mesmo, sendo que o mesmo é uma quantidade brutal de trabalho de preparação das reuniões, em especial nos ombros dos Directores de Turma, que neste período dispensam normalmente o dobro do tempo na Escola, ultrapassando facilmente as 40 horas semanais, sendo que esse tempo nunca é contabilizado ou recuperado. No fim deste processo os professores estão esgotados e extenuados, mas há quem pense que não é altura de descanso e quem nada faz deste trabalho tem por vezes o desplante de aceder a martirizar mais os colegas, obedecendo cega e cruelmente às mais disparatadas recomendações ou insinuações da tutela sobre a necessidade de preencher as interrupções lectivas.
Não sendo Director de Turma, “limitei-me” a preencher a tempo e horas as grelhas com as aulas previstas e efectivamente dadas (100% numa turma a que leccionou 3 disciplinas, 99,5% em outra com duas disciplinas e uma ACND), os níveis previstos, os diversos parêmetros de avaliação qualitativa, os conteúdos leccionados. Por comparação, pouca coisa, em especial porque antecipei bastante as últimas fichas de avaliação para ter uma semana final do período “limpa”. Mas quase me senti “culpado” perante a azáfama que via em meu redor, aquela que ninguém conhece fora das Escolas e que na 5 de Outubro é considerada uma rotina simples que deve, todos os anos, ser sobrecarregada com mais detalhes burocráticos kafkianos.
O mais “engraçado” é ver a maior parte dos colegas amargurados com as classificações obtidas pelos alunos, quando elas são abaixo das expectativas ou mesmo francamente insuficientes. Proclama o mito, alimentado por eduqueses e burocratas da Educação deslocados no tempo, vivendo numa escola permanentemente situada nos autoritários anos 60, que os professores são responsáveis por todos os males da avaliação:
• Se os alunos passam de acordo com as directrizes que afirmam ser essa a necessária regra, é porque vão mal preparados e os professores não são devidamente exigentes, não lhes desenvolvem as competências e lhes comprometem os futuros saberes, abandonando-os impreparados para o mundo do trabalho ou para um futuro académico.
• Se os alunos são retidos, é porque os docentes são demasiado rigorosos, são instrumentos de mecanismos de selecção social que procuram reproduzir diferenças de classe e promovem a exclusão social devido ao insucesso escolar.
Raramente os docentes têm razão porque se, por acaso, uma turma tem boas classificações, é porque os alunos são bons e qualquer professor consegue trabalhar com eles.
Ou seja, para certos sectores de opinião que nunca deram aulas ou o fizeram esporadicamente mas tudo sabem sobre o assunto - pena que digam, eu dar aulas? só gosto de desafios difíceis! ou então, eu lá tenho feitio e paciência para aturar isso! - o docente é sempre culpado, tenha cão, não o tenha, ou apenas esteja na loja a decidir se arranja um ou não.
Após décadas de literatura “especializada” sobre avaliação, de décadas de formação de professores já de acordo com a nova cartilha da avaliação centrada nas capacidades do aluno e não nas exigências do currículo, continuamos aparentemente entre a espada e a parede: se fazemos o que nos mandam, ou somos crucificados porque esta malta agora não sabe nada e a culpa é dos professores que os passam! (tese mais popular) ou porque os professores são uns autoritários e prepotentes que não sabem descer até ao aluno e avaliá-lo convenientemente (tese mais erudita).
O estranho é que parece que muita gente ignora que os professores já foram antes alunos e que embora alguns o possam ter esquecido - afinal há gente com problemas de carácter e memória em todo o lado, e isso não se mede pelo número de aulas dadas - são muitos os que já atravessaram vários regimes de avaliação e têm dessa evolução ideias muito nítidas e não são uns quaisquer irresponsáveis que atiram os testes ao ar, dando notas conforme o sítio e posição como caem os testes (era o que afirmava fazer o professor meu de Faculdade, que depois acrescentava retocar as notas para corresponderem a uma curva de Gauss perfeitinha).
A verdade é que na sua desconfiança permanente do trabalho dos professores cuja formação é da sua completa responsabilidade, o Estado por via do Ministério da Educação e de uma Secretaria de Estado mais virada para o assunto, produz regularmente novos diplomas e documentos para regular, condicionar e neutralizar o exercício da avaliação pelos docentes.
Se há algo que não é manifestamente simplex é o funcionamento da avaliação no Ensino Não-Superior, actividade regulada por inúmeras indicações, prescrições e recomendações.
Sexta-feira olhava com espanto e admiração alguns colegas - de várias idades e fases da carreira - aplicadamente debruçados sobre grelhas sofisticadíssimas, com inúmeras variáveis estatísticas destinadas a dar a ilusão da completa objectividade na avaliação que a tutela pretende - de forma a limitar a intervenção pessoal do docente, tida como nefasta -, ao mesmo tempo que se afirma que a avaliação deve ser adaptada a cada contexto educativo particular, a cada dinâmica de turma, a cada desempenho individual.
O paradoxo insanável dos “especialistas” que têm sustentado as teorias relacionadas com a avaliação desenvolvidas em Portugal nos últimos 20 anos passa exactamente por aí: a avaliação deve ser flexível, atenta às especificidades, ser “humana”, mas ao mesmo tempo obrigam-se os docentes-avaliadores à justificação da sua avaliação mediante mecanismos e grelhas que pretendem ser o mais impessoais e objectivas possível.
E no meio de tudo isto, só o distanciamento, o bom-senso, uma atitude crítica - não excessivamente explícita, para não incomodar ou levantar suspeições - conseguem ultrapassar tantos dilemas com que todos nós, docentes, enfrentamos no final de cada período, olhando para números e para rostos. O segredo único, a fórmula mágica, não existe. Uma boa metodologia e/ou estratégia avaliação é algo demasiado pessoal e dificilmente transmissível. Cada um adapta-se, com maiores ou menores concessões, maiores ou menores conflitos pessoais entre a pressão externa e a sua consciência.
Felizmente para mim, popr regra durmo de consciência tranquila e nenhum sobressalto foi até hoje causado por milhares e milhares de avaliações que fiz. E até hoje - neste momento bato fervorosamente na madeira da secretária que está debaixo do teclado - sem recursos ou contestações. Porque um caminho possível para uma avaliação sem problemas começa nos primeiros dia de aulas e continua por aí adiante na forma como claramente se explica às turmas e aos alunos o que se espera deles e se demonstra com transparência e sem receios aquilo que eles vão alcançando. A partir daí…
http://educar.wordpress.com/

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