Já no pós-genérico de Era uma Vez,
Vítor Silva Tavares, o idiossincrático editor da &Etc, diz ao espectador:
mais do que ler o que se escreveu sobre Ruy Belo, o importante é ler o próprio
poeta, ler as suas palavras, e só depois partir para o que veio a seguir.
É por isso que se levanta uma pergunta simples perante o
filme que Fernando Centeio e Nuno Costa Santos revelaram em estreia mundial no
Curtas Vila do Conde perante uma plateia entusiasta. A pergunta é: como filmar
a poesia? Como aquilo que ela é – como uma palavra que se entrega e se
partilha? Ou como o sítio de onde ela vem – como uma história oral de quem a
escreveu?
A
dificuldade que Centeio e Costa Santos têm em escolher entre uma e outra
explica precisamente qual é o problema de Ruy Belo, Era uma Vez. É um
objecto seguramente importante – e é-o duplamente no actual estado da cultura
em Portugal. É um filme que desenha com elegância o percurso de um poeta
“atípico” falecido demasiado cedo (em 1978, aos 45 anos de idade), um “católico
progressista” que ingressou na Opus Dei e começou por se doutorar em Direito
Canónico antes de “guinar” para a literatura.
Fá-lo sem
nunca esquecer que não faria sentido contar esse percurso se não houvesse as
palavras dos poemas - “o lugar onde o coração se esconde”, para citar o próprio
Ruy Belo. E a sua estreia em Vila do Conde é quase inevitável, ou não tivesse o
poeta uma relação privilegiada com a localidade (mercê do seu casamento com uma
filha da terra) e onde gostava de explorar a sua ligação ao mar.
Mas essa
elegância acomoda-se progressivamente numa “história oral” contada por “cabeças
falantes” (no caso mais “corpos falantes”), que parece truncada à medida do
documentário de divulgação televisiva e raramente consegue transmitir o frémito
de uma poesia que nos diz muito mais do que parece.
Teresa
Belo (viúva do escritor), Alice Vieira, Leonor Xavier, Medeiros Ferreira,
António Feijó, Fernando Pinto do Amaral, António Saraiva Dias ou Luís Miguel
Cintra recordam as suas vivências com o escritor. Desenham um retrato
fascinante de Ruy Belo, o homem, que em ocasiões sociais deixava de ser o
académico, o pensador, o poeta para ser apenas “um tipo porreiro que escrevia
uns versos” e gostava de jogar futebol.
Mas esse
retrato não nos aproxima como desejaríamos de Ruy Belo, o poeta. E os momentos
em que ouvimos Cintra, Ana Maria Teodósio ou Chico Buarque ler os seus poemas
deixam-nos água na boca para um outro filme onde seria a poesia de Belo a
contar a sua história. (A presença de Buarque faz sentido face à admiração de
Ruy Belo pelo cantautor brasileiro, mas parece extemporânea, desarticulada do
resto.)
O filme
que Fernando Centeio e Nuno Costa Santos fizeram ora filma a poesia enquanto
palavra ora a poesia enquanto história pessoal, mas (mesmo em apenas 55
minutos) nunca encontra o ponto certo onde eles se encontrem e floresçam. O que
é pena, mas não pode nem deve minimizar a importância que este filme tem apenas
por existir, hoje, num país onde nem o cinema nem a poesia têm o reconhecimento
que merecem; apenas por nos lembrar que os poetas existem para ser lidos e que
as suas histórias merecem ser contadas.