quarta-feira, março 21, 2007

As sequelas de Dayton

A 25 de Novembro de 2005, o comissário europeu para as questões do alargamento, Olli Rehn, declarou abertas com a Bósnia-Herzegovina as negociações de um acordo de estabilização e associação, fazendo assim desta entidade, oficialmente, uma potencial candidata à adesão. Mas com que Estado vai a União Europeia negociar? Desde há dez anos, a Bósnia vive sob um protectorado não manifesto, destinado a assegurar a aplicação dos acordos assinados em Novembro de 1995 na base militar de Dayton, no Ohio, e ratificados em Paris em Dezembro desse mesmo ano. Redigidos sob a batuta dos Estados Unidos, esses acordos previam – além do “cessar-fogo” – uma verdadeira Constituição (sem nenhum processo constituinte...), ratificando na Bósnia a coexistência de duas “entidades” – a República Srpska e a Federação Croato-Muçulmana – profundamente divididas por três anos de limpezas étnicas.

Será preciso lembrar que os signatários das negociações de Dayton, pela Sérvia e pela Croácia, foram, respectivamente, os presidentes Slobodan Milosevic e Franjo Tudjam – ou seja, os mesmos que em 1991 negociaram secretamente a divisão étnica da Bósnia-Herzegovina [1] nas costas das respectivas populações, em primeiro lugar as muçulmanas? [2] Uma tal divisão pressupunha que estas deveriam tornar-se “sérvias” ou “croatas”, ou que seriam favoráveis a um Estado islâmico dependente que Alija Izetbegovic se viu tentado a aceitar... As formações paramilitares ultranacionalistas bósnio-sérvias e bósnio-croatas propagaram a violência com o objectivo de atiçar os medos e os ódios e de modo a criar as condições duma limpeza dos territórios que “se aguentam” e se associam aos Estados vizinhos que lhes haviam fornecido as armas.

Uma parte dessas populações resistiu à engrenagem assim montada [3]. Foi por isso que nessa altura os dirigentes sérvios e croatas, apresentando-se como uma «muralha contra o perigo islamita» para melhor justificarem a divisão da Bósnia-Herzegovina, instrumentalizaram a seguinte equação enganadora: maioria muçulmana igual a maioria islamita – e risco, portanto, para os bósnios não muçulmanos, de voltarem a ser cidadãos de segunda, como no tempo do Império Otomano. Apanhados entre dois nacionalismos agressores, cerca de 70 % das 100.000 vítimas das limpezas étnicas [4] foram muçulmanas.

A legítima solidariedade do mundo muçulmano e a deslocação para a Bósnia de combatentes armados aumentaram as inquietações manipuladas por Belgrado e Zagrebe. No entanto, foi principalmente nas regiões de maioria muçulmana – no sentido étnico-cultural –, como Tuzla, que os partidos “cidadãos” marcaram mais pontos, contradizendo assim a equação atrás referida.

Infelizmente, o presidente Alija Izetbegovic não apoiou essas aspirações; oscilando entre um projecto islâmico e um nacionalismo muçulmano bósnio, não estava em condições de consolidar um “Estado” comum a uma grande parte das populações bósnio-sérvias e bósnio-croatas; e opôs-se, entre os muçulmanos bósnios, à orientação duma resistência apegada à mistura bósnia [5]. Mesmo assim, as correntes antinacionalistas e hostis a um Estado muçulmano apoiaram-no criticamente, vendo nele um mal menor e uma frágil possibilidade de preservar a Bósnia.

Mas a esperança duma musculada intervenção estrangeira contribuiu para simplificar a apresentação das situações em jogo e para tratar como estrangeiras as populações da Bósnia que se viravam... para os Estados vizinhos.

Nenhuma das grandes potências queria entrar em guerra e correr o risco de perder homens nesse conflito (na Bósnia não havia petróleo). Por conseguinte, os “planos de paz” negociados pelos europeus e pela Organização das Nações Unidas (ONU) homologaram a progressão das limpezas étnicas e foram de início denunciados pelos Estados Unidos. Estes, apresentando se então como defensores dos muçulmanos, regozijaram se com os reveses da diplomacia europeia e onusiana, ao mesmo tempo que promoviam no terreno o equilíbrio das forças militares: croato-bósnios contra bósnio-sérvios. Mas nem por isso os Acordos de Dayton deixaram de representar a aplicação da mesma política, ratificando as limpezas étnicas do Verão de 1995 em Srebrenica [6] e na Krajina croata, e consolidando, ao mesmo tempo, o poder dos presidentes Izetbegovic, Milosevic e Tudjman, todos eles signatários dos acordos.

Tal como noutras paragens, a apropriação pelas populações dos seus próprios destinos implica que se saiba a verdade a respeito da guerra, das suas causas e dos crimes cometidos – tendo isso como prévia condição a condenação dos criminosos. Infelizmente, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (TPIJ) continua excessivamente dependente das opções políticas hipócritas e evolutivas das grandes potências para poder impulsionar uma tal evolução [7].

Como pode este Tribunal esclarecer o massacre de Srebrenica ou a expulsão maciça dos sérvios da Eslovénia e da Krajina, quando essas duas limpezas étnicas ocorreram à vista das tropas internacionais, ainda por cima antes das negociações de Dayton? Como tornar credível a inculpação de Milosevic durante os bombardeamentos ordenados pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em 1999, quando ele foi, até essa data, a base de apoio de todos os planos de paz dos ocidentais, nomeadamente em Dayton, e quando Franjo Tudjman nunca foi inculpado? Por último, como podiam os Acordos de Dayton unificar a Bósnia quando eles constitucionalizavam lógicas inconciliáveis: como dar corpo a uma cidadania bósnia quando as escolhas políticas continuam dependentes da natureza “étnica” das entidades que compõem o Estado?

Desde 1995, houve na Bósnia-Herzegovina,, em todos os âmbitos, locais e centrais, eleições controladas pela Organização de Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Mas como as populações votaram “mal”, reforçando os partidos nacionalistas que tinham empreendido a guerra, a força militar encarregada de aplicar os acordos, a IFOR (Implementation Force), que devia retirar-se, permaneceu no terreno e foi rebaptizada força de estabilização da paz (Stabilization Force).

Paralelamente, os poderes do alto representante da comunidade internacional foram alargados, não devendo ele, a partir daí, vigiar a aplicação dos acordos mas tomar «decisões de carácter obrigatório», ou seja, pondo em aplicação autênticas leis. Impôs assim uma matrícula comum dos veículos, um passaporte único, uma moeda geral (marka, alinhada pelo marco alemão), uma lei sobre a cidadania, uma bandeira... Do mesmo modo, destituiu os responsáveis locais que haviam sido eleitos, demitindo, como em Março de 1999, o presidente da República Srpska, o ultranacionalista Nikola Poplasen...

Uma outra “curiosidade”: o governador do Banco Central, nomeado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), não pode ser um cidadão bósnio... A reestruturação do sector público, a venda das empresas do Estado e a aquisição dos fundos de investimento são prerrogativas do Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento (BERD). A 1 de Janeiro de 2003, uma Missão de Polícia da União Europeia (MPUE) substituiu a das Nações Unidas. E desde 2 de Dezembro de 2004 uma força europeia de 7000 homens (EUFOR) assegura a substituição da OTAN no quadro da operação Althea. Isso significa, não o fim do protectorado, mas a sua europeização, de tal modo que a União corre o risco de vir a negociar os futuros acordos de estabilização e associação... consigo mesma. Situação que implica questões decisivas: “retirar-se”, sim, mas como e em proveito de quem?

Sob a pressão de uma maciça presença estrangeira, a Bósnia resultante das negociações de Dayton foi proclamada “una” quando se mantém dividida, tendo a “guerra fria interna” substituído a guerra propriamente dita. Vendo arrogância nos “gestos” autoritários do alto representante, uma parte crescente das populações preferiu votar nos partidos ultranacionalistas, em vez de votar nos candidatos da “comunidade internacional”. A exigência dos Estados Unidos no sentido de o partido de Alija Izetbegovic “sanear” os homens considerados demasiado ligados ao Irão e extraditar, sem qualquer garantia legal, os pretensos “terroristas”, tem suscitado reacções do mesmo género. Mas além disso, e sobretudo, no plano sócio económico, o “síndroma da dependência” [8] incrustou-se, a lógica liberal asfixia o sector público, a presença internacional capta os financiamentos e os três partidos nacionalistas funcionam de maneira caciquista num país onde há 40 % de desempregados e onde quase metade dos rendimentos é gasta na alimentação.

A União Europeia tem agora “necessidade” de um Estado bósnio unificado – e, por isso, de pôr em causa a estrutura constitucional herdada de Dayton – para negociar a europeização dos Balcãs ocidentais [9]. Mas a consolidação é impossível se em relação ao passado não houver transparência, e ainda menos se não houver uma política económica de coesão e protecção social de todas as populações. Ora, acontece que nem uma nem outra estão na ordem do dia.


[1] Cf. a publicação em Maio e Junho de 2005 das trinta e seis notas estenografadas respeitantes a estes encontros, no semanário Feral Tribune (Croácia); a revista Dani (Bósnia); e o comentário de Andrej Nikolaidis no mensário Monitor (Sérvia-Montenegro) de Julho de 2005.
[2] Cf. “Des mois pour te dire”, Le Monde, 14 de Janeiro de 1993, reproduzido em La Déchirure yougoslave. Questions pour l’Europe, L’Harmattan, Paris, 1994. Ler também “La dérive d’une Croatie ‘ethniquement pure’”, Le Monde diplomatique, Agosto de 1992; e “Les incertitudes de la fédération croato-bosniaque”, Le Monde diplomatique, Junho de 1994.
[3] Cf. Svetlana Broz (neta de Josip Broz, dito Tito), Des gens de bien au temps du mal. Témoignages sur le conflit bosniaque (1992-1995), Lavauzelle, Paris, 2005.
[4] Cf. Lara Nettlefield, investigadora em Sarajevo da Universidade de Columbia (Nova Iorque), relatório apresentado na conferência do Centro de Estudos e Investigações Internacionais (CERI), 28 de Novembro de 2005.
[5] Cf. La Déchirure yougoslave, op. cit., mas também “Mouvante identité des Musulmans”, Le Monde diplomatique, Outubro de 1995, e Xavier Bougarel, “L’islam bosniaque, entre identité culturelle et idéologie politique”, em Le Nouvel Islam balkanique. Les musulmans acteurs du post-communisme 1990-2000, Maisonneuve & Larose, Paris, 2001.
[6] Cf. Sylvie Matton, Srebrenica. Un génocide annoncé, Flammarion, Paris, 2005.
[7] Mostra-o a reviravolta, em 3 de Outubro de 2005, por pressão austríaca, da procuradora Carla Del Ponte, que passou a fazer depender a abertura das negociações com a Turquia das negociações com a Croácia: o argumento da não colaboração de Zagrebe com o TPIJ foi subitamente abandonado.
[8] Cf. Christophe Solioz e Svebor André Dizdarevic (dir.), La Bosnie-Herzégovine. Enjeux de la transition, L’Harmattan, Paris, 2003.
[9] Catherine Samary, Da Federação Jugoslava aos protectorados europeus, Le Monde diplomatique, Janeiro 2006.
Catherine Samary
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/europa/e075.htm

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