domingo, abril 23, 2006

Economia Solidária: um novo paradigma?

1. Colocando a Questão
Antes de desenvolver o tema, para evitarmos equívocos, cabe perguntar o que entendemos por "economia solidária", "paradigma" e qual a razão de introduzir o adjectivo "novo" neste contexto.
O termo economia solidária abriga muitas práticas económicas e não há um consenso sobre o seu significado. Em geral ele está associado a práticas de consumo, comercialização, produção e serviços (entre os quais o de financiamento, em particular) em que se defendem, em graus variados, a participação colectiva, autogestão, democracia, igualitarismo, cooperação, auto-sustentação, a promoção do desenvolvimento humano, responsabilidade social e a preservação do equilíbrio dos ecossistemas. Entretanto, nem todas essas características estão presentes nas diversas práticas concretas que são elencadas como economia solidária em estudos e análise distintas que temos encontrado.
A palavra paradigma, por sua vez, possui muitos significados que nos últimos anos tem sido cada vez mais alargados, fugindo ao seu rigoroso emprego científico e filosófico, contemporaneamente afirmado por Thomas Kuhn, ao estudar a estrutura das revoluções científicas - quando sob uma certa compreensão de ciência, considerada "ciência normal", com todos os seus aspectos metodológicos inerentes, encontra-se dificuldades em resolver-se certos problemas, surgindo um conjunto progressivo de anomalias que põe em crise o próprio paradigma, sendo aquela compreensão de ciência suplantada por outra (1). Contudo, partindo-se da expressão de uma compreensão organizada de mundo e natureza, de uma concepção de ciência com seus métodos, linguagens e procedimentos, estendeu-se a uma visão de mundo que integra uma compreensão de ciência, cosmos, arte, religião e sociedade.
Quando se fala em um novo paradigma, assim compreendido, pensa-se, em geral, em uma nova visão de mundo, de ciência, de arte e de religião totalmente integrados em uma espécie de filosofia que rompe com o paradigma anterior. Esse novo paradigma aparece, em muitos discursos, associado à Ecologia Profunda, Pensamento Sistémico, Holismo e Teoria da Complexidade, entre outras denominações. Boa parte da literatura de divulgação desse novo paradigma está repleta de simplificações de teses científicas e filosóficas, chegando a conclusões bastante avessas ao que seria suportável cientificamente, como por exemplo, as sínteses que compõem princípios de mecânica quântica com superstições astrológicas, pretensamente articuláveis em razão de uma nova compreensão do conhecimento como um mapa que jamais espelha totalmente a realidade, buscando considerar-se a validade pragmática dos jogos de linguagem da física e da astrologia em seus empregos concretos.
A meu ver, mantendo-se a noção de paradigma até agora consensuais na comunidade científica, não caberia falar da economia solidária como um novo paradigma mas como uma nova compreensão de economia que está sendo construída a partir de novas práticas económicas compreendidas sob um novo paradigma científico, que poderia ser denominado como paradigma da complexidade. Por outro lado, se conferíssemos ao termo paradigma um sentido próximo ao seu emprego antigo de modelo ou padrão, também não poderíamos falar da economia solidária como um novo paradigma, uma vez que as diversas práticas, que poderiam ser caracterizadas como formas de economia solidária, são muito distintas, sendo consideradas solidárias em razão de um conceito bastante amplo de solidariedade.
Destaque-se também que, embora o paradigma da complexidade venha se firmando nos últimos vinte anos, suportando novas elaborações em diversos campos das ciências particulares, o solidarismo, como uma alternativa ao capitalismo e ao que se convencionou chamar de socialismo estatal, não é algo novo. Há duas grandes vertentes que anteriormente reivindicaram o termo na expressão de suas teses. Uma delas é composta pelo socialismo utópico e anarquista; a outra desdobra-se, nos anos 50 e 60, da Doutrina Social da Igreja Católica (2). Assim, é preciso salientar que há um solidarismo enquanto doutrina, sistema e ideologia que é anterior ao próprio paradigma adjectivado como novo.
Poderíamos aqui fazer todo um debate sobre as características do paradigma da complexidade e de como muitas práticas de economia solidária, que se pretendem transformadoras, estão ainda inscritas no velho paradigma e reproduzem o capitalismo. Poderíamos também realizar uma análise crítica do solidarismo, anteriormente debatido como alternativa ao neo-capitalismo e socialismo estatal, que vem encontrando variados graus de efectivação histórica em alguns países da América Latina, particularmente da América Central. (3)
Preferimos, entretanto, apenas abordar alguns aspectos centrais desse novo paradigma que aplicados à economia permitem reconstruí-la, possibilitando avançar na transformação das práticas de economia solidárias existentes e potencializá-las para a construção de uma sociedade pós-capitalista. Assim, daremos atenção especial às noções de Rede, Fluxos e Laços de Realimentação.
2. As Redes de Colaboração Solidária como uma Alternativa Pós-capitalista
A grande novidade nos anos 90 sobre as práticas de economia solidária é a progressiva conscientização da importância da organização de redes para o sucesso dos empreendimentos. Com efeito, na última década, inúmeras práticas de solidariedade expandiram-se internacionalmente integrando-se em movimentos de rede. A partir delas pode-se vislumbrar os primeiros sinais do nascimento de uma nova formação social que tende a superar a lógica capitalista de concentração de riquezas e exclusão social, de destruição dos ecossistemas e de exploração dos seres humanos.
A noção de Rede coloca a ênfase nas relações entre diversidades que se integram, nos fluxos de elementos que circulam nessas relações, no laços que potencializam a sinergia colectiva, no movimento de autopoiese em que cada elemento concorre para a reprodução de cada outro, na potencialidade de transformação de cada parte pelo sua relação com as demais e do conjunto pelos fluxos que circulam através de toda a rede.
No caso das práticas de economia solidária, a difusão do consumo e do labor solidários, em laços de Realimentação, permite que os valores económicos gerados pelo trabalho possam realmente o processo de produção e consumo, promovendo o bem viver das colectividades e o desenvolvimento ecológica e socialmente sustentável, expandindo o campo de possibilidades de realização da liberdades públicas e privadas.
A nova geração de redes de colaboração solidária que começa a surgir baseada nesses princípios ou propriedades carrega consigo características de inúmeras práticas solidárias bem sucedidas, entre as quais elencam-se: os Sistemas Locais de Emprego e Comércio (LETS), Sistemas Locais de Troca (SEL), Sistemas Comunitários de Intercâmbio (SEC), Rede Global de Trocas, Economia de Comunhão, Autogestão de Empresas pelos Trabalhadores, Sistemas de Micro-Crédito, Sistemas de Crédito Recíproco, Bancos do Povo, Bancos Éticos, Fair Trade ou Comércio Équo e Solidário, Organizações de Marca, Agricultura Ecológica, Consumo Crítico, Consumo Solidário, Grupos de Compras Comunitárias, Movimentos de Boicote, Sistemas Locais de Moedas Alternativas, difusão de Softwares Livres (Free Softwares) e inúmeras outras práticas de socio-económica solidária que poderiam ser aqui elencadas (4). O crescimento mundial do Sector Público Não-Estatal, ou do Terceiro Sector em geral, indica a ampliação de novos campos de possibilidade para acções solidárias estrategicamente articuladas com o objectivo de promover as liberdades públicas e privadas.
Partindo-se dessas práticas e compreendendo-as desde o paradigma da complexidade, podemos organizar estrategicamente redes de colaboração solidária com a capacidade de expandir novas relações sociais de produção e consumo, difundindo uma nova compreensão de sociedade, em que o ser humano, compreendido em suas múltiplas dimensões, pode dispor das mediações materiais, políticas, educativas e informativas para realizar eticamente a sua singularidade, desejando e promovendo a liberdade dos demais.
Os elementos básicos das redes de colaboração solidária são: a) as células de consumo (grupos de compras comunitárias, por ex.) e de produção (unidades produtivas cooperativa das, por ex., nas áreas de extracção, cultivo, criação, transformação e serviço), b) as conexões entre elas, e c) os fluxos de materiais, de informação e de valor que circulam através da rede.
As propriedades básicas da rede são: a) Autopoiese – a qualidade que ela tem de reproduzir-se a si mesma na medida em que é capaz de produzir os bens ou valores necessários para satisfazer suas próprias demandas e um excedente que lhe permite expandir-se, incorporando mais pessoas e aumentando, assim, a demanda produtiva. b) Intensidade - trata-se da qualidade de envolver o maior número possível de pessoas tanto no consumo quanto na produção solidárias. c) Extensividade - trata-se da propriedade de gerar novas células de produção e de consumo em regiões cada vez mais longínquas possibilitando chegar até elas os fluxos de matérias, informação e valor necessários a promover desenvolvimento local auto-sustentável. d) Diversidade - refere-se a produzir a maior diversidade possível de bens visando satisfazer as necessidades e desejos de todos os consumidores solidários, buscando produzir tudo o que eles ainda consumam do mercado capitalista em função de seu bem viver ou como insumos necessários ao processo produtivo. e) Integralidade - significa que cada célula, através da rede, está conectada a todas as outras células, sendo afectada pelo crescimento das demais ou por seus problemas e dificuldades, apontando-se, assim, a necessidade de um crescimento organicamente sustentável da rede como um todo, em razão do que dimensiona-se a composição orgânica da cada célula em particular, isto é, a incorporação de tecnologia em sua relação com o trabalho vivo empregado. f) Realimentação - o fato de que uma célula demanda produtos e serviços de outras, o que permite o crescimento sustentável de todas, isto é, da rede como um todo. Quanto maior o número de células com maior intensividade, maior é a Realimentação da rede. g) Fluxo de Valor - significa que o valor económico produzido em cada etapa da cadeia produtiva circula pela rede, podendo nela se concentrar ou dela evadir-se. Isto é, quando uma célula produtiva compra insumos do mercado capitalista (uma fábrica de macarrão compra ovos no mercado capitalista, por ex.), uma certa quantidade de valor sai da rede realimentando o giro capitalista. Entretanto, se uma nova célula que produza aquele insumo for criada em conexão com as demais (uma granja que supra a demanda por ovos), então aquele valor (gasto, neste exemplo, no consumo de ovos) permanece realimentando a produção de outra célula da rede. Por outro lado, se o que for produzido na rede for consumido por parcelas mais amplas da sociedade (vender macarrão e ovos para fora da rede, por ex.), então o volume de valor que resulta desse processo se concentra na Realimentação da rede. O excedente de valor produzido pela rede pode ser utilizado para criar novas unidades produtivas que satisfaçam as demandas produtivas ou de consumo final dela mesma (uma unidade que produza trigo para o macarrão e ração para as aves, por ex., ou novos produtos finais que a rede consome mas que ainda não são produzidos por ela mesma). h) Fluxo de Informação - isso significa que todo o conhecimento gerado na rede está disponível em qualquer célula. Assim, se por extensividade uma nova célula for criada em um local distante, a partir dela é possível que a comunidade tenha toda a informação necessária para replicar qualquer uma das células já existentes, possibilitando realizar a intensividade ampliando as possibilidades de emprego e renda local, melhorando o padrão de consumo de todos os envolvidos na colaboração solidária. i) Fluxo de Matérias - significa que o que é produzido em uma célula pode ser consumido como insumo produtivo ou como produto final por outras células, de modo que uma realimenta outra. Com o desenvolvimento das redes, a tendência é que elas cheguem a formar cadeias produtivas completas ou semi-completas. j) Agregação - trata-se da propriedade de redes locais se integrarem em redes regionais, de redes regionais se integrarem em redes internacionais e de redes internacionais se integrarem em uma rede mundial de colaboração solidária. Cada agregação fortalece a rede ampliando a diversidade de ofertas de produtos, aumentando a demanda deles e totalizando um volume maior de excedente, que pode ser aplicado na criação de novas células, ampliando a extensividade, isto é, a capacidade de expansão da rede em razão do maior fluxo de valor e especialmente de informação, com um banco de dados muito maior de células adaptáveis às diversas realidades locais.
A Rede de Colaboração Solidária, portanto, integra grupos de consumidores, de produtores e de prestadores de serviço em uma mesma organização. Todos se propõem a praticar o consumo solidário, isto é, comprar produtos e serviços da própria Rede para garantir trabalho e renda aos seus membros e para proteger o meio ambiente. Por outro lado, uma parte do excedente obtido pelos produtores e prestadores de serviços com a venda de seus produtos e serviços na rede é reinvestido na própria rede para gerar mais cooperativas, grupos de produção e micro empresas, a fim de criar novos postos de trabalho e aumentar a oferta solidária de produtos e serviços. Isso permite incrementar o consumo de todos, ao mesmo tempo em que diminui volume e o número de itens que a rede ainda compra no mercado capitalista, evitando com isso que a riqueza produzida na Rede seja acumulada por capitalistas. O objectivo da Rede é produzir tudo o que as pessoas necessitam para realizar o bem viver de cada um, diversificando a produção e melhorando o padrão de consumo de todos os que participam da Rede. Desse modo, quanto mais essas redes crescem distribuindo renda com a justa remuneração do trabalho solidário, maiores são o conjunto de pessoas que a elas se integra e a demanda de consumo por elas atendida, gerando novas oportunidades de trabalho e ampliando ainda mais a distribuição de renda.
Desse modo, rompendo com o paradigma da escassez (segundo o qual o valor de um bem é tanto maior quanto mais raro ele for frente à sua demanda social) tem-se que, em uma Rede de Colaboração Solidária, quanto mais se reparte a riqueza, mais a riqueza aumenta ! Essa é uma das principais consequências da transformação solidária da economia sob o paradigma da complexidade.
De fato, o que gera a riqueza é o trabalho. Com o trabalho são feitos bens e serviços para atender as necessidades e desejos das pessoas. Após a comercialização solidária desses bens e serviços e o pagamento de todas as despesas, sobra ainda um valor excedente. Ora, quanto mais se reparte essa riqueza excedente gerada pelo trabalho, tanto mais as pessoas podem comprar os produtos e serviços da Rede. E quanto mais elas compram solidariamente, mais oportunidade de trabalho elas geram para outras pessoas que ainda estão desempregadas. Na medida em que essas pessoas podem trabalhar, elas podem produzir mais riqueza. Assim, quanto mais se distribui a riqueza na Rede, mais os seus produtos são consumidos, mais oportunidades de trabalho que gera riqueza são criadas e um número maior de pessoas passa a integrar a rede como produtores e consumidores. Trata-se de um círculo virtuoso que integra consumo e produção! Uma das melhores maneiras de distribuir essa riqueza é criar novas cooperativas ou empreendimentos e remunerar mais trabalhadores, produzindo uma diversidade maior de produtos à disposição do bem viver de todos.
Sob o paradigma da complexidade, a organização de uma Rede de Colaboração Solidária permite, contudo, integrar acções não apenas de cooperativas e grupos de produtores e consumidores, mas também de associações de moradores, organizações eclesiais, sindicatos, movimentos populares e culturais e de outras organizações sociais como formas de difusão do consumo e do trabalho solidários, da preservação do equilíbrio ecológico e das lutas contra toda a forma de preconceito, discriminação e opressão, reafirmando o direito de todos à cidadania. De fato, economia, política e cultura estão integradas, não sendo corretor, sob a lógica da complexidade, considerá-las isoladamente.
Com efeito, quando uma Rede de Colaboração Solidária é organizada, ela passa a atender demandas imediatas da população por trabalho, melhoria no consumo, educação, reafirmação da dignidade humana das pessoas e do seu direito ao bem viver, ao mesmo tempo em que combate as estruturas capitalistas de exploração e dominação responsáveis pela pobreza e exclusão, e começa a implantar um novo modo de produzir, consumir e conviver em que a solidariedade está no cerne da vida. As Redes de Colaboração Solidária portanto: a) permitem aglutinar diversos actores sociais em um movimento social orgânico com forte potencial transformador; b) atendem demandas imediatas desses actores por emprego de sua força de trabalho e por satisfação de suas demandas por consumo, pela afirmação de sua singularidade negra, feminina, etc; c) negam estruturas capitalistas de exploração do trabalho, de expropriação no consumo e de dominação política e cultural, e d) passam a implementar uma nova forma pós-capitalista de produzir e consumir, de organizar a vida colectiva afirmando o direito à diferença e à singularidade de cada pessoa, promovendo solidariamente as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas.
Do mesmo modo, as Redes de Colaboração Solidária não se restringem apenas a critérios económicos como factor de avaliação do sucesso dos empreendimentos em promover o desenvolvimento ou enfrentar a pobreza, considerando também diversos outros aspectos relacionados à humanização de cada pessoa, à expansão das liberdades públicas e privadas.
Economicamente, o sucesso das redes pode ser considerado pela difusão do consumo e labor solidários. O consumo solidário significa seleccionar os bens de consumo ou serviços que atendam nossas necessidades e desejos visando tanto realizar o nosso livre bem viver pessoal, quanto promover o bem viver dos trabalhadores que elaboram aquele produto ou serviço, como também manter o equilíbrio dos ecossistemas. De fato, quando consumimos um produto em cuja elaboração seres humanos foram explorados e o ecossistema prejudicado, nós próprios somos co-responsáveis pela exploração daquelas pessoas e pelo prejuízo ao equilíbrio ecológico, pois com nosso ato de compra contribuímos para que os responsáveis por essa opressão possam converter as mercadorias em capital a ser reinvestido do mesmo modo, reproduzindo as mesmas práticas injustas socialmente e danosas ecologicamente. O ato de consumo, portanto, não é apenas económico, mas é também ético e político. Trata-se de um exercício de poder pelo qual efectivamente podemos apoiar a exploração de seres humanos, a destruição progressiva do planeta, a concentração de riquezas e a exclusão social ou nos contrapor a esse modo lesivo de produção, promovendo, pela prática do consumo solidário, a ampliação das liberdades públicas e privadas, a desconcentração da riqueza e o desenvolvimento ecológica e socialmente sustentável. Ao seleccionar e consumir produtos identificados pelas marcas das redes solidárias nós contribuímos para que o processo produtivo solidário encontre seu acabamento e que o valor por nós dispendido em tal consumo possa realmente a produção solidária em função do bem viver de todos que integram as redes de produtores e consumidores.
O labor solidário significa, além dos aspectos referentes à autogestão e corresponsabilidade social dos trabalhadores, que o excedente do processo produtivo seja reinvestido solidariamente no financiamento de outros empreendimentos produtivos, permitindo integrar às actividades de trabalho e consumo aqueles que estão sendo excluídos pelo capital, ampliar a oferta de bens e serviços solidários e expandir as redes de produtores e consumidores, melhorando as condições de vida de todos que aderem à produção e ao consumo solidários. O sucesso aqui se avalia não apenas pela quantidade de trabalhadores que se integram à Rede, mas pelas condições de realização de sua dignidade humana através do trabalho, bem como pela remontagem das cadeias produtivas, uma vez que os novos empreendimentos visam estrategicamente passar a produzir aquilo que ainda é adquirido no mercado capitalista, sejam bens e serviços para consumo final ou insumos, materiais de manutenção e outros itens demandados no processo produtivo. Esse expediente visa corrigir os fluxos de valor, a fim de que o consumo final e o consumo produtivo não desaguem na acumulação privada fora das redes, mas possam nelas realmente a produção e o consumo solidários, completando os segmentos das cadeias produtivas sobre os quais as redes ainda não tenham autonomia.
Politicamente, as redes de colaboração solidária defendem a gestão democrática do poder, buscando garantir a todos iguais condições de participar e decidir não apenas sobre as actividades de produção e consumo praticadas nas redes, mas também, nas demais esferas políticas da sociedade, visando combater toda forma de exploração de trabalhadores, expropriação de consumidores e dominação cultural, enfatizando o valor da cidadania activa na busca do bem comum e da cooperação entre os povos.
No campo da informação e educação, as redes de colaboração solidária buscam promover da melhor maneira possível a circulação da informação e geração de interpretantes que não apenas permitam ampliar os conhecimentos de cada pessoa, suas habilidades técnicas e domínios tecnológicos ou a sua competência em produzir e interpretar novos conhecimentos necessários às tomadas de decisão em todas as esferas de sua vida, mas que além disso permitam recuperar a sensibilidade, a auto-estima e outros elementos de ordem ética e estética imprescindíveis à realização do bem viver de cada pessoa e de toda a colectividade.
Eticamente as redes de colaboração solidária promovem a solidariedade, isto é, o compromisso pelo bem viver de todos, o desejo do outro em sua valiosa diferença, para que cada pessoa possa usufruir, nas melhores condições possíveis, das liberdades públicas e privadas. Desejar a diferença significa acolher a diversidade, de etnias, de religiões e credos, de esperanças, de artes e linguagens, em suma, acolher as mais variadas formas de realização singular da liberdade humana que não neguem as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas. Promover as liberdades significa garantir às pessoas as condições materiais, políticas, informativas e educativas para uma existência ética, solidária.
Conclusão
Operando sob o paradigma da complexidade, desdobramos as consequências económicas de uma hipótese simples: sendo praticados a produção e o consumo solidários em laços de Realimentação, qualquer unidade produtiva pode vender toda a sua produção, gerando um excedente de valor económico que permite criar novas unidades produtivas solidárias que, conectadas em rede, podem atender a uma diversidade ainda maior de elementos demandada pelo consumo final e produtivo de novas células, incorporando um número progressivamente maior de consumidores e produtores em um movimento auto-sustentável de expansão. A essa hipótese acrescentamos uma segunda: os sujeitos actualmente excluídos nas sociedades capitalistas podem organizar redes de colaboração solidária em suas comunidades, partindo das acções que actualmente desenvolvem de consumo, posto que a prática de compras solidárias e colectivas permite melhorar o padrão de consumo de todos os participantes e, ainda, poupar recursos que podem financiar actividades solidárias de produção que, por sua vez, possibilitam aprimorar ainda mais o seu consumo em quantidade, qualidade e diversidade. O conjunto dessas duas hipóteses, que começa a ser confirmado pelas redes de colaboração solidária que estão se constituindo, nos leva à conclusão de que uma certa revolução económica - integrando acções locais, regionais e globais - pode difundir-se contemporaneamente na medida em que os actores, que buscam gerar alternativas de auto-sustentação económica frente à exclusão capitalista, conectem suas acções de produção e consumo em uma ampla rede de colaboração solidária. Essa revolução económica está necessariamente conectada a uma revolução política e cultural, que são as três faces de um mesmo processo social em curso, compreendido aqui de maneira complexa sob a perspectiva histórica dos segmentos sociais excluídos e daqueles que lhes são solidários.
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Notas:
1. Veja-se Thomas Kuhn. A Estrutura das Revoluções Científicas. Editora Perspectiva, 1987
2. Veja-se: Fernando Bastos de ÁVILA. Neo-capitalismo, Socialismo e Solidarismo. Rio de Janeiro, Livraria Agir, 1963 e, do mesmo autor, a terceira edição desse livro, revista e ampliada: Solidarismo, Rio de Janeiro, Livraria Agir, 1965
3. Na perspectiva anarquista veja-se: Workers solidarity Movment em http://flag.blackened.net/revolt/wsm.html e Anarchism is international em http://flag.blackened.net/revolt/inter.html. Na perspectiva de desdobramentos da doutrina social da Igreja Católica, veja-se "Movimiento Solidarista Costarricense" em http://par.sicanet.org.sv/cis/movsolcr.htm. A projeção desse movimento na Costa Rica pode ser percebida na seguinte passagem do referido texto: "A finales de la década del 40 y principios de la del 50 aparecieron las primeras empresas solidaristas... Por varios años este movimiento se mantuvo inactivo... De 1972 a 1982, el Movimiento Solidarista pasó de 12 asociaciones a varios centenares. Especialmente de 1978 en adelante, el Movimiento se extendió del Valle Central a la zona Atlántica, el Pacífico Sur y al Norte del país. Se ha trasladado del sector industrial y comercial al agrícola, del sector privado al público, y de Costa Rica que fue el primer país que lo impulsó y puso en práctica, a El Salvador, Guatemala, Nicaragua, Honduras, Colombia y Venezuela. La promulgación de la Ley de Asociaciones Solidaristas en 1984, le ha dado al solidarismo los mismos derechos y prerrogativas legales de los otros movimientos sociales como el cooperativismo y el sindicalismo democrático. // Actualmente, a la par de su promulgación, está en la etapa de profundización doctrinaria y de renovación técnica y administrativa, para lo que cuenta con el gran impulso del Movimiento Solidarista Costarricense.// El crecimiento del solidarista ha sido asombroso, como lo demuestra el estudio del Ministerio de Trabajo y Seguridad Social de septiembre de 1987, según el cual existen 1836 asociaciones solidaristas con 212.088 trabajadores afiliados."
4. Uma grande variedade dessas práticas de economia solidária pode ser pesquisada a partir do site mantido pela Rede de Colaboração Solidária da cidade de Curitiba, acessível no seguinte endereço eletrônico http://www.ifil.org/rcs

http://www.milenio.com.br/mance/

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