quarta-feira, julho 26, 2006

O estranho mundo da pedofilia segundo o SIS

Morte em Veneza, uma das obras-primas do Prémio Nobel da Literatura de 1929 Thomas Mann, que descreve a fixação estética de um maestro de meia--idade por um adolescente (adaptada ao cinema por Luchino Visconti, no filme do mesmo nome, com Dirk Bogarde e a música de Mahler como protagonistas), assim como dois livros do escritor português Possidónio Cachapa - Materna Doçura e Viagem ao Coração dos Pássaros -, estão entre as obras citadas por um relatório do Serviço de Informações e Segurança (SIS) como fazendo parte de "uma cultura pedófila".No relatório, que é datado de 2000 e foi na segunda-feira citado por uma testemunha numa sessão do julgamento do caso Casa Pia, lê-se: "Cumpre assinalar a existência de uma 'cultura pedófila', ou, se se quiser, de um 'ambiente cultural' de pedofilia, sustentado e mantido não só através de literatura e textos justificativos, como ainda por uma simbologia cuidada." Em seguida, os analistas do SIS referem alguns autores de obras literárias e ensaios que consideram"de referência no ambiente cultural da pedofilia"."Onde é que vão buscar isso?"Viagem ao Coração dos Pássaros, um dos livros de Possidónio Cachapa referenciados pelo SIS, tem como protagonista Kika, ou Joaquina, uma criança com poderes mágicos que ao longo da obra se transforma em mulher. Lido de fio a pavio, o livro, publicado em 1999, não revela a chave da inclusão, pelo relatório do SIS do ano seguinte, numa alegada "cultura pedófila". Uma perplexidade que o seu autor assume com alguma exasperação: "Onde é que essas pessoas vão buscar essas coisas?" Embora Cachapa, de 40 anos, admita que "em literatura muitas vezes se vai por caminhos ínvios e na obra de qualquer autor pode-se encontrar o que se quiser", confessa não conseguir perceber o que é que poderia relacionar a obra com pedofilia (atracção sexual por crianças) ou com abuso sexual de menores. "Não percebo a razão de ser disso. Na minha opinião e na de todas as pessoas que conheço, não se pode tirar qualquer ilação desse género." E, entre o riso e a indignação, desfia o absurdo: "Será porque a protagonista é , no início do livro, uma criança? Será porque tem uma relação com um anjo?" Por essa ordem de ideias, porém, todos os livros que falam de crianças que têm relações especiais com adultos, e vice-versa, seriam parte da tal cultura, ou ambiente cultural. Toda a obra de J. D. Salinger, o autor de O Apanhador no Feno (Catcher in the Rye), por exemplo, entraria nessa classificação. Talvez mesmo O Principezinho, de Saint-Exupéry, com a sua narrativa da sedução entre um menino e uma raposa (adulta?), pudesse entrar nesta espécie de "index de parapedófilos" em relação ao qual Cachapa comenta "ser só o que faltava estar incluído"."E esqueceram-se do 'Lolita'?"Para não falar, é claro, de Lolita, o célebre romance de Nabokov - que, curioso, não está na lista. "É estranho que tenham esquecido esse", ironiza o escritor português, que conclui: "Claro que, quando se escreve um livro, o leitor se apossa dele, procurando coisas que lhe interessam. E isso não é controlável."De acordo com o jurista Rui Pereira, director do SIS quando o relatório em causa foi elaborado, terá sido essa mesma "incontrolável" apropriação a determinar a composição da lista. Assim, explica o actual coordenador da Unidade de Missão para a Reforma Penal, que confessa ter Morte em Veneza entre os seus livros favoritos, "as referências não resultam de um preconceito de carácter cultural, mas de uma razão apenas documental: esses autores e títulos terão sido encontrados em sítios da Internet relacionados com a pesquisa que estava a ser levada a cabo". Pesquisa que Rui Pereira ordenou na sequência de casos como o de Dutroux e que tinha como objectivos essenciais averiguar da existência de indícios de tráfico de crianças e da sua utilização em filmes porno. O relatório citado é o segundo que o SIS efectuou sobre a matéria, sendo o primeiro de 1998.

Fernanda Câncio
http://dn.sapo.pt/2006/07/12/sociedade/
o_estranho_mundo_pedofilia_segundo_o.html

Sem comentários: