segunda-feira, julho 31, 2006

Para onde vai o capitalismo?

Há duas semanas estava na Venezuela quando se realizava a assembleia da Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP) e tive a oportunidade de acompanhar de perto os seus discursos inaugurais e as suas decisões finais. Nessa oportunidade pude observar a consolidação de um movimento empresarial que tem por fundamento os cartéis que dominam a economia mundial. A OPEP veio substituir o cartel das sete irmãs que controlaram a oferta mundial de petróleo até aos anos 70 do século passado. O seu sucesso é resultado do realismo económico em que baseia as suas acções. Num ambiente internacional dominado pela retórica do chamado “livre mercado”, a OPEP ajusta-se à prática efectiva do mercado mundial, predominante desde o final do século XIX. Da mesma forma, a sua condução actual associa esta prática com as práticas colonialistas que foram finalmente questionadas e só parcialmente superadas após a Segunda Guerra Mundial.
Do outro lado do mundo, o grande gigante do petróleo que não participa da OPEP mas que utiliza com muito gosto as consequências de preço e de poder geopolítico da sua existência e da sua prática. A Rússia de Putin rearticula­‑se com a economia mundial utilizando como arma principal a sua grande reserva petrolífera e de gás. Ao compreender finalmente que o livre mercado é um conceito armadilha para iludir os fracos, a equipa económica e estratégica de Putin prepara uma OPEP do gás ao aliar­‑se com os produtores de gás da região geopolítica da antiga União Soviética que a Rússia procura reorganizar sob a sua hegemonia.
É interessante notar como estes fenómenos fazem parte de um reordenamento estratégico mundial no qual pesa muito o aumento da procura chinesa e os seus movimentos para assegurar o abastecimento do seu espectacular crescimento económico. A cooperação entre a China e a Rússia é um dos elementos chaves desta nova fase do sistema económico mundial. Em boa hora a liderança russa percebeu dois dados fundamentais para entender a fase actual do sistema mundial.
Em primeiro lugar, após vários ensaios de aliança estratégica com os Estados Unidos, ficou claro que este país já não tem poder financeiro ao viver cada vez mais do capital externo, depois de se tornar no maior devedor do planeta. Sendo ao mesmo tempo cada vez mais dependente das importações ao atingir o estádio de parasitismo que caracteriza os poderes imperialistas. No meu livro de 1978, Imperialismo e Dependência, que se editará proximamente na Colecção Ayacucho de clássicos latino­‑americanos, eu chamava a atenção para a entrada definitiva dos Estados Unidos neste estádio económico que pudemos observar no auge colonial ibérico, holandês e sobretudo inglês, muito estudado por Hobson e por Lenin. Qualquer país que pretenda ter um papel importante na economia mundial tem que inter­actuar com os Estados Unidos como um poder hegemónico decadente. Sugiro aos leitores que procurem actualizar esta análise na colecção de 4 volumes sobre Hegemonia e Contra-hegemonia que organizei para a editorial da Universidade Católica do Rio de Janeiro e para as edições Loyola.
Em segundo lugar, a Rússia teve que disciplinar os interesses privados que foram criados a partir de um verdadeiro assalto ao Estado russo. Este processo ainda está em curso e o seu resultado será uma enorme revitalização do capitalismo de Estado que organizou quase sem contraste interno a sociedade soviética que a Rússia desfez. É interessante assinalar que o governo norte-americano actual já acusou esta situação com a intervenção directa do vice-presidente Cheney e uma estratégia de cerco sobre a Rússia que mostra uma vez mais que a contenção soviética inaugurada com a Guerra Fria não era uma estratégia ideológica mas geopolítica.

Poderão os Estados Unidos sem recursos financeiros próprios convencer o resto do mundo a financiar esta nova aventura de contenção do grande espaço euro-asiático que une a velha rota da seda que vai do mediterrâneo até à China?
Neste contexto, chamam a atenção duas sondagens. De um lado, o Pew Research Center mostra o estado de choque entre a política internacional dos Estados Unidos e a opinião pública mundial. Os países onde existe uma opinião favorável em relação aos Estados Unidos superior a 50% reduzem­‑se ao Japão (60%), à Nigéria (60%), à Grã-Bretanha (54%) e à Índia (58%). A China e a Rússia estão próximas dos 50%. A França e a Alemanha estão em torno dos 40%. A Indonésia, o Egipto, o Paquistão, a Espanha, a Jordânia e a Turquia estão abaixo dos 30%. Mais importante ainda é constatar que uma grande maioria de países entende que o mundo se tornou mais inseguro com a guerra contra o Iraque (International Herald Tribune, 14 de Junho de 2006)
Por fim, é interessante constatar os resultados do estudo da GlobeScan e da Universidade de Maryland sobre a aceitação da chamada livre empresa e do livre mercado como o regime ideal para construir o futuro. Depois da imensa propaganda do pensamento único, da vitória final do liberalismo e do fim da história, sé 36% por cento dos franceses dizem que o é, só 47% dos turcos o aceitam, 59% dos italianos, 63% dos espanhóis, 65% dos canadenses e alemães, 66% dos britânicos. Os índices de 70% ficam reservados para os Estados Unidos, a Índia e a China.
Aparentemente parece uma maioria forte, mas é impressionante que encontremos índices de rejeição tão fortes em vários países que estão sob o bombardeamento ideológico dos grandes meios de comunicação mundiais. Igualmente, se comparamos os dois dados, vemos pelo menos que se pensa num capitalismo que não aceita a hegemonia norte-americana.
Devemos aprofundar estas análises para acompanhar o desenvolvimento da subjectividade mundial que se afasta a passos largos da unanimidade do pensamento único. E é necessário pensar com cuidado na reacção desta subjectividade face à reorientação da distribuição de forças mundiais. Neste contexto, cresce o interesse pelo fenómeno dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) ao qual incorporamos a África do Sul que tem de liderar um continente que terá mais de mil milhões de habitantes nos próximos 30 anos.

Theotônio dos Santos
http://infoalternativa.org/mundo/mundo165.htm

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