terça-feira, outubro 31, 2006

O Programa Ideal

Esta pode ser a última vez que escrevo. Num daqueles lampejos de genialidade que ocorrem uma vez a cada cem anos, caiu-me no alto da cabeça, qual maçã de Newton, a receita infalível para fazer o programa de televisão ideal para o público português. E isso far-me-á rico. Muito rico. Suficientemente rico para passar o resto da vida a viver em Beverly Hills, ocupando o tempo a entrevistar candidatos ao cargo de passeador oficial dos meus muitos galgos afegãos.
Começaria por um cenário colorido (e quando digo “colorido,” quero mesmo dizer “colorido;” qualquer coisa que abrangesse no mínimo dois terços do espectro cromático) com palco para atracções musicais, zona de conversa com sofás e almofadas rodeando uma mesa geométrica vanguardista e com espaço para sentar público de estúdio.
Os apresentadores seriam três. Um homem (cruzamento entre Fernando Mendes e Manuel Luís Goucha - macho ma non troppo) que teria obrigatoriamente um handicap qualquer, ou seja, poderia ser obeso mórbido, não ter uma perna, gaguejar ou ser viúvo recente, alguma coisa que permitisse ao público simpatizar com ele de imediato e estabelecer uma saudável empatia. A seu lado, duas mulheres. Uma jovem e bonita, loura de preferência e suficientemente estúpida para fazer os outros dois parecerem físicos nucleares. A outra já entradota, quarentona talvez, gorda, mãe de dois filhos e mulher de um operário fabril desempregado que bebesse e lhe chegasse a roupa ao pelo sempre que o Glorioso perdesse pontos. Caber-lhe-ia representar o “País Real” e conferir ao programa um pouco de sabedoria popular.
Para além destes três, alternaria a visita de um negro vestido com tanga de pele de leopardo (que fizesse um número cómico em que se abanaria muito ao som de kuduru e se roçasse num dos apresentadores sem dizer uma palavra) com uma rubrica de comentário social em que dois homossexuais efeminados, mas não assumidos, comentariam recortes de revistas cor-de-rosa mostrados num ecrã através de gritos agudos lancinantes e momentos de pugilato homoerótico com cabelos arrancados e uma ou outra carícia dissimulada nas partes baixas respectivas.
Em cada programa existiria uma atracção musical convidada que deveria conformar-se a um conjunto de exigências:
-Vestuário com mais de oito cores diferentes (tonalidades da mesma cor não contam).-Coreografia arrojada.-Nada de instrumentos acústicos.-Obrigatoriedade de playback com movimentos labiais descoordenados.
Haveria também um momento sério em que deficientes profundos, desempregados de longa duração, esposas traídas, gordos a pedir banda gástrica, filhos abandonados, mamalhudas que gostariam de fazer reduções, jovens sem posses que gostariam de comprar uma playstation de último modelo desfiariam o seu rosário de queixas acompanhados por música comovente de violino e piano e receberiam o conforto e a simpatia gerais.
Seguir-se-ia um passatempo em que, quem fosse mais lesto a ligar para o número no ecrã ganharia uma quantia modesta em dinheiro que, por gritos e estardalhaços da equipa de apresentadores pareceria uma grande fortuna. Além disso, poderia passar largos minutos a falar do que lhe viesse à cabeça, podendo ser desde queixas de saúde a louvores aos apresentadores ou a alguém muito parecido com eles que também aparecesse na televisão. Uma parcela ínfima do valor das chamadas, mais alto do que o prémio, reverteria a favor dos participantes na rubrica anterior.
Para além da atracção musical convidada, o programa teria uma banda residente composta por adolescentes com bom aspecto que protagonizariam também uma pequena rábula telenovelesca, servindo esta, sobretudo, para promover a venda de discos e merchandising.
Espaçados pelo programa, os inúmeros intervalos comerciais serviriam para vender trens de cozinha milagrosos, colchões ortopédicos, preservativos adaptáveis e cerveja com sabores variados.
O horário de exibição seria indiferente e a duração deveria ser mais para o longo do que para o breve. Quanto ao título, qualquer coisa cheia de significado e emoção que despertasse o melhor do pior em cada espectador. Qualquer coisa como “Com o amor no coração” ou “Nós e você – Paixão e Devoção” ou ainda “Espectador Querido, Quero Coisar Contigo.” É só puxar pela imaginação.
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