sexta-feira, dezembro 29, 2006

Avisos da CIA descartados pela Casa Branca

A administração Bush acumula insucessos, inclusive numa área que durante muito tempo lhe permitiu impor­‑se politicamente aos seus adversários: a segurança nacional. Desautorizado pelo Congresso na questão da gestão de vários portos por uma empresa pública do Dubai, o presidente dos Estados Unidos tem cada vez mais dificuldades em convencer a opinião pública dos méritos da política que conduz no Iraque. O precedente do descalabro vietnamita é muitas vezes evocado.

Antigo oficial dos Serviços de Informações da Marinha, em Setembro de 1991 Scott Ritter foi integrado nas equipas de inspecção das Nações Unidas encarregadas de verificar a eliminação pelo Iraque das suas armas de destruição maciça (ADM), bem como dos vectores capazes de as lançar sobre alvos. Ritter obteve dos serviços secretos norte-americanos, britânicos e israelitas as informações mais fiáveis. Ora, em meados da década de 1990 constatou que o Iraque se sujeitara às exigências de desarmamento das Nações Unidas.

No entanto, a partir de 1991, todas as administrações norte-americanas irão perpetuar a ficção segundo a qual Bagdade possuía ADM. Isto porque o objectivo da Casa Branca, como Ritter pôde compreender, era uma «mudança de regime» [1]. Quanto às ligações entre a Al-Qaeda e Saddam Hussein, as quais teriam criado o risco de a primeira aprender com o segundo o manejamento das ADM – foi esse um dos motivos avançados por George W. Bush para justificar a guerra –, Scott Ritter soube em Setembro de 2001 que a verdade era exactamente o contrário: o regime laico do Iraque opunha-se profundamente ao fanatismo islâmico de Osama Bin Laden. De resto, os serviços de informações do Pentágono sabiam que a fonte dessa acusação de conluio era um falsificador [2].

Crises, perigos iminentes, ameaças à segurança interna e aos interesses vitais da nação... Pelo menos desde 1947, estes conceitos fazem parte integrante da política externa dos Estados Unidos. Serviram para mobilizar uma opinião pública reticente e, mais ainda, um Congresso que teve de autorizar as enormes despesas necessárias à sua aplicação. Em semelhante contexto, a realidade não tem importância nenhuma. Os exageros calculados, ou mesmo as contraverdades, são práticas correntes em todas as presidências, desde que em Março de 1947 Harry S. Truman expôs a célebre doutrina que tem o seu nome, apresentando as crises na Grécia e na Turquia da forma mais inquietante para a paz mundial. Segundo o subsecretário de Estado Dean Acheson, o Congresso e o povo americano não estavam «suficientemente conscientes» da amplidão das despesas necessárias para afrontar aquilo que se anunciava como uma crise de longa duração em toda a Europa e noutras partes do mundo.

George Kennan, o principal teórico da contenção da potência soviética, exprimiu reservas à doutrina Truman; o próprio secretário de Estado George C. Marshall considerou que o presidente exagerava a gravidade da situação. Mas apesar de o bloco soviético ter desaparecido, as autoridades americanas mantêm o hábito de exagerar, de evocar ameaças “sinistras” que pairam sobre a paz mundial [3].

A partir de 1947, segundo a própria formulação de Walter C. Matthias, responsável até à sua aposentação (em 1973) pelas estimativas da CIA a respeito da potência soviética, «um interminável debate sobre as intenções da URSS opôs as agências de informações civis e militares» [4]. Para justificar as maciças despesas em armamento, convinha pintar os objectivos da URSS com cores muito alarmantes, sublinhando mais as capacidades soviéticas do que as intenções do regime. Por conseguinte, as tendências liberalizantes que então surgiram na URSS foram silenciadas, a importância da cisão sino-russa foi grosseiramente subestimada e, como sublinha Matthias, «a partir de 1968 as nossas reflectidas e equilibradas apreciações da União Soviética foram postas em causa cada vez mais» [5]. Um tal contexto permite compreender melhor a Guerra do Vietname, mas também a maior parte dos outros aspectos da política desde 1946.

O presidente republicano Richard Nixon, que tinha uma profunda aversão pela CIA, demitiu em 1973 o director da agência, Richard Helms, por ele recusar que ela servisse de cobertura ao arrombamento do Watergate. Por seu turno, os principais conselheiros do presidente democrata Jimmy Carter confessaram que as estimativas da CIA os «irritavam», não propriamente por serem «inexactas» mas porque não lhes pareciam «pertinentes» [6].

Em 1981, Ronald Reagan nomeou para dirigir a agência William Casey, um homem que «brigava com os seus analistas, os combatia e gritava contra eles» [7]. Conduziu então a sua própria política externa sublinhando: «O nosso programa de avaliação tornou-se uma poderosa alavanca que permite influenciar as decisões políticas» [8]. O resultado dessa politização da CIA levava­‑a a exagerar uma ameaça cada vez mais virtual: em 1989, nem sequer entreviu o desmoronamento total do bloco soviético.

Os antigos agentes da CIA que publicaram as suas memórias são concordantes a respeito da falta de habilidade das estimativas da agência. Apesar de terem profissionais muito qualificados e apesar da imensa quantidade de informações de que dispunham, desde 1946 nunca houve em Washington um sistema de informações fiável, “desinteressado”, capaz de orientar com ponderação a política externa do país. Pelo contrário, a sua representação do mundo foi sempre determinada por ideias preconcebidas ou interesses de capela, com as conhecidas consequências que isso teve no Vietname, no Iraque e noutras paragens.

Antes da Guerra do Vietname, os governos dos Estados Unidos deformavam os dados das informações com objectivos políticos; e agora continuam a fazê-lo. O trabalho da CIA só é de facto levado a sério quando se trata de permitir que a sua ala paramilitar (action wing) continue a realizar missões subversivas no estrangeiro. Claro que toda a actividade de serviços secretos e de recolha de informações é parasitada, sujeita a manipulações. Contam mais as estratégias políticas do que os conhecimentos objectivos.

Na Indochina, o governo dos Estados Unidos dispunha de muito bons conhecedores das realidades locais. Em 1949, George W. Allen foi integrado nos serviços de informações do Pentágono, passando de imediato a acompanhar os esforços que Paris levava a cabo com vista a preservar o seu império colonial. A leitura das suas memórias é edificante. Allen lembra a certa altura, por exemplo, que o presidente Dwight Eisenhower e o secretário de Estado John Foster Dulles eram hostis à assinatura pela França dum cessar-fogo com o inimigo, o qual acabara de obter uma grande vitória no campo de batalha de Dien Bien Phu. Os Estados Unidos opuseram­‑se aos Acordos de Genebra de 1954 e, «com base numa série de suposições (...) inteiramente irrealistas», retomaram o estandarte da missão francesa na Indochina, uma decisão votada ao fracasso [9].

Para começar, o governo americano impediu a aplicação dos Acordos de Genebra que previam eleições com vista à unificação do país. Ao mesmo tempo, violou as disposições relativas ao desarmamento das partes em confronto. Foi assim que os Estados Unidos se envolveram numa guerra que durou quase vinte anos, chegando essa mobilização, em 1968, a mais de 500.000 soldados, naquele que foi o mais longo e dispendioso conflito bélico da história dos Estados Unidos.

Em cada etapa, no entanto, os analistas da CIA tinham previsto o que ia suceder. A pretensa crise do golfo de Tonquim, em Agosto de 1964, «espantou» Allen, por saber que Saigão e Washington estavam nessa altura envolvidos em missões clandestinas na região, com a esperança de fortalecerem o regime sul­‑vietnamita [10]. Allen começou por imaginar que um serviço militar ignoraria porventura aquilo que um outro estava a urdir, visto notar: «Eu não compreendia a que ponto a administração [de Lyndon Johnson] tentava ter um pretexto para intensificar a nossa intervenção». O mesmo se deu com os acontecimentos de Pleiku, em Fevereiro de 1965, que serviram de pretexto a «represálias preventivas: o ataques de Pleiku legitimaram uma já planificada intensificação do conflito» [11].

Em 1998, a CIA publicou uma história do período que medeia entre 1962 e 1968, assinada por Harold Ford [12], em que revelou ser falsa a afirmação do chefe do Pentágono, Robert McNamara (depois presidente do Banco Mundial), quando este a posteriori lamentou não ter tido especialistas no Vietname a quem pudesse dirigir­‑se. Na realidade, ele recusara ouvir esses especialistas. Entre os fracassos de Washington, é aqui de referir, em primeiro lugar, a sua incapacidade de compreender a doutrina militar dos comunistas e de avaliar com precisão o seu número. Por outro lado, a administração Johnson obstinou-se a apoiar o ditador corrupto Nguyen Van Thieu, esperando pôr cobro, dessa maneira, à instabilidade política subsequente ao assassinato – aprovado pelos Estados Unidos – do presidente Ngo Dinh Diem (Novembro de 1963). Em segundo lugar, as tropas de Saigão, treinadas e equipadas por Washington para combater a guerrilha, agiram como se tivessem pela frente uma guerra convencional, à americana. O resultado de todos esses erros foi que em 1975 o regime fantoche de Thieu implodiu ante os olhos do presidente Gerald Ford, totalmente impotente.

Mas, ao longo dessa arriscada empresa, os comunicados de vitória iam-se sucedendo, principalmente motivados pelo desejo de manipular a opinião pública. Se alguns responsáveis políticos, militares e agentes da CIA que estavam no terreno se iludiram, acreditando sinceramente naqueles relatórios errados, a maior parte sabia que a sua carreira dependia do grau de optimismo de que dessem provas. A mais pública manifestação desses embustes ocorreu na altura da controvérsia sobre o “equilíbrio das forças”, que antecedeu a ofensiva do Tet, em Fevereiro de 1968. Quanto mais fracos fossem os efectivos atribuídos às tropas inimigas, mais os militares podiam pretender ter cumprido a sua missão. Por consequência, recusaram levar em linha de conta as diversas forças locais do adversário, riscando com ligeireza cerca de 300.000 homens. Porque admitir a sua existência, como reconheceu o general Creighton Abrams em Agosto de 1967, teria levado a «inquietantes» conclusões [13]...

A CIA transmitiu as suas objecções, mas ratificou a manigância. O resultado disso, segundo a confissão de Allen, foi que a derrota do Tet se revelou tanto mais estrondosa quanto «a campanha psicológica de exagero levada a cabo no Outono de 1967» desempenhou um papel central na campanha de reeleição de Johnson [14]. Foi aliás após a ofensiva do Tet que os Estados Unidos começaram a compreender que não ganhariam a guerra.

Harold Ford e George Allen chegam à mesma conclusão, que este último resume da seguinte maneira: «Os nossos dirigentes tendem a iludir-se» [15]. No entanto, nos quadros da CIA, muitos funcionários bem informados mostravam-se tão críticos da arriscada aventura indochinesa como os seus declarados adversários. Artigos publicados no seio da agência admitiram com desarmante franqueza que «uma grande parte das informações» coligidas pela CIA era, «em resumo, bagatelas» [16]. Foi também amplamente reconhecido o carácter confuso e inepto de certas operações especiais dos serviços de espionagem ou do Pentágono [17]. E se é verdade, actualmente, que desde há quinze anos os progressos da tecnologia decuplicaram a quantidade de dados de que os agentes de informações dispõem, esta profusão, longe de facilitar a investigação e a análise, dificultou, pelo contrário, a sua exploração – e tornou-a até menos pertinente ou falsa.

No tocante aos decisores, toda a gente sabe desde há décadas que as suas ideias preconcebidas, o interesse pessoal e as ambições políticas, nomeadamente a vontade de serem reeleitos, os dissuadem de ter em conta as informações de que não querem ouvir falar. A maior parte dos altos funcionários interiorizou este tipo de obrigação, admitindo que aqueles que tomam as decisões esperam dos serviços secretos, acima de tudo, informações que fortaleçam os seus objectivos. Deste modo, os responsáveis políticos procedem a uma selecção informativa, porque não só confiam na sua própria avaliação, como têm o seu próprio programa a cumprir. São muito poucos os funcionários dos serviços secretos que pensam que o seu saber poderá impedir a continuação duma política funesta ou perigosa. O caso do Iraque traz-nos uma prova suplementar disso mesmo.

As diferenças culturais e políticas entre o Vietname e o Iraque são significativas, sendo aliás inteiramente diferente a situação geoestratégica. Os Estados Unidos encorajaram e apoiaram materialmente Saddam Hussein ao longo da guerra contra o Irão (1980-1988) – apesar do escândalo do Irangate [18] –, temendo que o Irão estabelecesse no Golfo Pérsico uma hegemonia xiita. Esse receio mantém-se, obviamente: se a maioria xiita tomar o poder no Iraque, coisa que parece provável, ver-se-ão fortalecidas as ambições geopolíticas que o Irão acalenta nesta área. Todavia, não obstante este paradoxo fundamental da posição norte­‑americana, tornando pouco provável a emergência duma real democracia, os Estados Unidos continuam a repetir muitos dos erros que levaram à sua derrota na Indochina.

A recolha de informações funcionou de forma tão medíocre no Iraque como no Vietname. De resto, foi precisamente porque estas duas guerras correram mal para os Estados Unidos que estamos em condições de saber muito mais do que é habitual a respeito daquilo que os agentes dos serviços secretos tinham a dizer.

Ainda que os verdadeiros motivos da intervenção americana no Iraque sejam diversos, está fora de dúvida que uma certa mentalidade dos meios dirigentes teve nisso um papel fulcral. Donald Rumsfeld, actual secretário da Defesa, resumiu-o quando sugeriu ao presidente Bush, logo após a sua reeleição, que a política externa da nova administração devia ser menos reactiva, «virar-se para o futuro» [19]. Bush pensava a mesma coisa. Também neste caso, as informações nunca pesaram de facto nas decisões importantes. A administração vigente não só recusou considerar o que os diversos serviços lhe faziam saber, como deformou cientemente essas análises. Se a semelhança com o Vietname é manifesta, é porque a política externa dos Estados Unidos foi sempre elaborada desta forma.

Antes mesmo de chegar ao poder, a actual administração já estava decidida a mostrar-se mais agressiva. E, tal como no Vietname, os Estados Unidos foram ao encontro de surpresas e derrotas imprevistas. Mas de modo nenhum imprevisíveis: relatórios pormenorizados fornecidos por Scott Ritter e outros especialistas do armamento iraquiano foram afastados em proveito de “informações” extremamente duvidosas, as mais extravagantes das quais foram cozinhadas por um tal “Curveball”, um iraquiano a quem os serviços secretos alemães não atribuíam o menor crédito. A própria CIA fez circular advertências contra alguns desses informantes, que tinha na conta de fabuladores [20]. Por outro lado, a administração Bush descurou outras advertências, apesar de solenes, de peritos que previam um futuro caótico para o Iraque, após a queda de Saddam Hussein, futuro esse susceptível de desencadear uma guerra civil. Para o grande público, a CIA continua a estar na origem da maior parte das atoardas de que a Casa Branca se serviu para justificar a sua guerra contra o Iraque [21]. Na realidade, porém, a administração Bush adoptou o comportamento das suas antecessoras em matéria de política externa: dizer seja o que for ao Congresso e à população para obter a sua adesão. Mas o bom êxito de semelhante cometimento não pode durar sempre...

Agora só resta ao presidente Bush sustentar, como em 14 de Dezembro de 2005, que «muitas das nossas informações se revelaram erradas». E cantar, mais uma vez, a velha cantiga, segundo a qual o desejo de Washington é favorecer «um Iraque livre e democrático» – quando na sua administração já ninguém crê possível semelhante coisa. O único objectivo da Casa Branca consiste agora em tirar o presidente, bem como o seu partido, de um desastroso erro militar e político.

Convém contudo ter presente que tanto no Vietname como no Iraque não foi apenas a duplicidade dos dirigentes que actuou; outros factores desempenharam o seu papel. Por exemplo, na década de 1960, o Pentágono já tinha uma fé cega na capacidade de fogo das suas armas, na sua superioridade tecnológica, na sua mobilidade e no seu domínio do espaço aéreo. Esta suficiência é uma característica nacional, que desde sempre os fabricantes de armas estimulam ao máximo, favorecendo a ideia de que as dificuldades sociais e políticas desaparecem como por encanto logo que o inimigo seja destruído por uma intervenção que o «choque» e «apavore», nas palavras do secretário da Defesa, Donald Rumsfeld (operação «Shock and Awe»).

No entanto, tanto no Iraque como no Vietname, a tecnologia revelou-se extremamente falível e a logística foi um pesadelo. A tecnologia, precisamente por se ter tornado infinitamente mais complexa, falhou no Iraque em maiores proporções, ao mesmo tempo que certos problemas essenciais e muitíssimo previsíveis, como a falta de agua, se mostraram espantosamente dispendiosos e de resolução demorada [22]. O preço seguiu­‑se: as guerras do Vietname e do Iraque têm sugado somas inesperadas, quer por força da confiança depositada numa tecnologia onerosa, quer devido a intermediários incompetentes e corruptos.

Para a sociedade norte-americana, as consequências têm sido severas. O financiamento da aventura indochinesa levou Lyndon Johnson a renunciar a uma boa parte do seu programa intitulado “guerra à pobreza”, tendo então Martin Luther King concluído: «As bombas que caem no Vietname explodem sobre as nossas cidades». A guerra no Sudeste Asiático contribuiu também para o enfraquecimento do dólar e para o abandono do padrão­‑ouro por Washington [23]. A guerra no Iraque, por seu turno, coincide nos Estados Unidos com défices comerciais e orçamentais maciços. No Outono de 2005, esta guerra já terá custado, no mínimo, 225 mil milhões de dólares, o correspondente, em dois anos e meio, a metade dos custos totais do envolvimento americano no Vietname durante nove anos. Algumas estimativas aludem a um total de 1 bilião de dólares, o que constituiria um recorde histórico [24].

Apesar da sua capacidade de fogo, as duas operações militares exigiram um destacamento considerável de tropas. Quando os efectivos militares mobilizados para o Vietname atingiram os 500.000 homens, a opinião pública dos Estados Unidos virou-se contra o presidente, tendo o seu partido sido afastado da Casa Branca. No caso do Iraque, manifestou-se muito mais depressa a hostilidade da opinião pública, se não à guerra pelo menos à forma que esta revestiu. Em fins de 2005, quase dois terços dos americanos desaprovavam o comando das operações, considerando 58 por cento que o presidente não tinha apresentado bons motivos para manter as tropas no terreno. Em Fevereiro passado, 63 por cento pensavam que o objectivo doravante visado não justifica a perda de vidas americanas nem os custos financeiros. E 48 por cento chegaram a reclamar uma retirada imediata dos efectivos [25].

O que se passa nos âmbitos político, económico e social é ainda mais decisivo do que as considerações militares. Foi assim em 1975 no tocante ao Vietname, e continua a sê-lo agora a respeito do Iraque. Porque uma guerra, ou se vence politicamente, ou fica perdida. Ora, em Washington, os dirigentes quase não têm em conta as advertências dos seus peritos quando estes lhes lembram as limitações da força militar. A inclinação que o presidente tem para negligenciar as realidades políticas locais em proveito duma afirmação da força das armas (o receio de perder a face) acaba quase sempre por ser a preocupação principal, seja qual for a duração do conflito.

Tanto no caso do Vietname como no do Iraque, a opinião pública, de início mobilizada com base em cínicas contraverdades, acabou por não acreditar fosse no que fosse que os dirigentes lhe declarassem. De resto, com o tempo, muitos homens de relevo ficaram incapazes de distinguir entre realidade e ficção. Alguns dirigentes americanos pensaram sinceramente que, se os comunistas vencessem no Vietname, os “dominós” cairiam e a China apoderar-se-ia do Sudeste Asiático. Do mesmo modo, apesar de a guerra no Iraque ter sido justificada com a ideia de que o regime de Bagdade possuía armas de destruição maciça e tinha ligações com a Al-Qaeda, a verdade é que nenhum facto confirmou tais alegações, as quais, logicamente, contaminaram o crédito a atribuir a todos os discursos oficiais ulteriores.

Três anos após o desencadeamento do conflito, continuam estacionados no Iraque 160.000 soldados norte­‑americanos e aliados, muito mais do que o presidente Bush tinha imaginado. Tal como no Vietname, o moral destas tropas é baixo e continua a descer. Mas, tendo em conta a capacidade de resistência iraquiana, vão ser requeridos durante anos efectivos importantes. Na Indochina, o presidente Nixon pretendeu “vietnamizar” a guerra, fazendo recair o fardo dos combates sobre o imenso exército do presidente Thieu. Estas tropas, sob comando católico, estavam já desmoralizadas, e não conseguiram aguentar o embate durante muito tempo.

Quanto ao exército iraquiano, os Estados Unidos começaram por dissolvê-lo. E está agora a ser parcialmente reconstruído com a ajuda dos antigos oficiais sunitas de Saddam Hussein. Uma tal decisão, adoptada em desespero de causa, é uma completa reviravolta. A ideia de que uma tal força possa atingir os objectivos proclamados por Washington ou ser militarmente eficaz parece toda ela quimérica. Tal como o Vietname, onde os budistas eram hostis à minoria católica de onde provinham os dirigentes apoiados por Washington, o Iraque é um país religiosamente dividido. Os Estados Unidos têm agora de optar entre o risco de desordens que a insuficiência de tropas americanas tornou provável ou o perigo de uma guerra civil, no caso de armarem os iraquianos.

Os resultados das eleições no Iraque exacerbaram essas rivalidades. Os xiitas representam três quintos da população, os seus dirigentes têm as suas próprias ideias e programas políticos. Se eles se apoderarem do exército ou do Estado, tudo leva a crer que o poder do Irão irá aumentar nesta zona do mundo. Apesar das muitas advertências dos peritos, a administração Bush não parece apreender a complexidade dos problemas políticos que tem pela frente. O Afeganistão, contudo, lá está para lhe lembrar que as vitórias militares, em última análise, dependem da política, e não o inverso.

Tanto no Iraque como no Vietname, os Estados Unidos subestimaram o tempo que tinham de ficar no terreno e iludiram­‑se quanto à eficácia dos seus aliados. Os esforços da administração Bush têm tantas probabilidades de êxito como os dos seus antecessores na Indochina. No Vietname havia profundas clivagens religiosas, mas o Iraque é um país ainda mais fraccionado, parecendo iminente a perspectiva duma guerra civil. Se no Vietname foram os comunistas que chegaram ao poder, no Iraque o que desde já se anuncia é um caos total.

Num memorando confidencial de Outubro de 2003, Rumsfeld admitia o seguinte: «Faltam-nos os instrumentos de avaliação para saber se vamos ganhar a guerra mundial contra o terrorismo ou perdê-la». Quer isto dizer que alguns membros influentes da administração Bush têm desde há bastante tempo menos confiança nas suas acções do que na altura em que se lançaram nesta guerra [26]. Mas, tal como no Vietname, é tarde demais para mudar de rumo. Presentemente, parece estar em jogo a credibilidade militar dos Estados Unidos.

A longo prazo, a política interna passa sempre à frente. Foi o que aconteceu com a Guerra do Vietname; e o mesmo acontecerá sem dúvida com a do Iraque. Em 1968, nos Estados Unidos, as sondagens viraram-se contra os democratas, e a ofensiva do Tet, em Fevereiro, apanhou desprevenido o presidente Lyndon Johnson, que não quisera acreditar nas estimativas da CIA, segundo as quais o exército rebelde tinha mais de 600.000 combatentes – nem ele nem os seus generais. Depois, em 1968, Richard Nixon ganhou as eleições por ter prometido uma paz condigna ao povo americano, cansado da guerra. Mas esta ainda durou mais sete anos.

_____
* Historiador, autor de Another Century of War?, Nova Iorque, 2004, e de The Aqe of War, Lynne Rienner Pub., Boulder (Colorado), 2006, 199 pp., $21.

[1] Scott Ritter, Iraq Confidential: The Untold Story of the Intelligence Conspiracy to Undermine the UN and Overthrow Saddam Hussein, Nation Books, Nova Iorque, 2005, p. 9 e seguintes, 75, 112-113, 289-291.
[2] The New York Times, 6 de Novembro de 2005; notícia da AFP, 24 de Novembro de 2005.
[3] Gabriel Kolko e Joyce Kolko, The Limits of Power: The World and United States Foreign Policy, 1945­‑1954, Harper & Row, Nova Iorque, 1972, pp. 339-342.
[4] Willard C. Matthias, America’s Strategic Blunders: Intelligence Analysis and National Security Policy, 1936­‑1991, University Park, Pennsylvania State University Press, 2001, p. 3. Cf. igualmente, pp. 45-46, para uma avaliação das intenções soviéticas em 1946.
[5] Ibid., p. 3.
[6] Ibid., p. 313. Cf. Cf. igualmente Robert M. Gales, From the Shadows: The Ultimate Insiders Story of Five Presidents and How They Won the Cold War, Simon & Schuster, Nova Iorque, 1996, pp. 30-31.
[7] Ibid., p. 207.
[8] Ibid., p. 286.
[9] George W. Allen, None So Blind: A Personal Account of Intelligence Failure in Vietnam, Ivan R. Dee Inc., Chicago, 2001, p. 78.
[10] Um contratorpedeiro espião norte­‑americano que operava nas águas territoriais do Vietname do Norte foi atacado pela marinha de Hanói e danificado. Este incidente serviu de pretexto à intensificação militar americana na Indochina.
[11] George W. Allen, op. cit., p. 183, 185. A 6 de Fevereiro de 1965, 300 insurgentes sul-vietnamitas atacaram o campo militar de Pleiku, provocando a morte de oito americanos e ferindo uma centena de outros.
[12] Harold R Ford, CIA and the Vietnam Policymakers: Three Episodes 1962-1968, CIA Center for the Study of Intelligence, Washington DC, 1998.
[13] George W. Allen, op. cit., p. 248.
[14] Ibid., p. 266.
[15] Ibid., p. 267.
[16] Steven R. Ward, Evolution beats revolution in analysis, Studies in Intelligence, CIA Center for the Study of Intelligence, vol. 46, n.º 3, 2002.
[17] Ler, outros outros, John T. Carney e Benjamin F. Schemmer, No Room for Error: The Covert Operations of America’s Special Tactics Units from Iran to Afghanistan, Ballentine Books, Nova Iorque, 2002, e Robert Baer, La Chute de la CIA. Les mémoires d’un guerrier de l’ombre sur les fronts de l’islamisme, Jean-Claude Lattès, Paris, 2002.
[18] Financiamento da contra-revolução nicaraguense através da venda de armas ao Irão, nessa altura sob embargo norte-americano.
[19] Bob Woodward, Plan of Attack, Simon & Schuster, Nova Iorque, 2004, p. 19.
[20] Bob Drogin e John Goetz, “The Curveball saga”, Los Angeles Times, 20 de Novembro de 2005.
[21] Michael Scheuer, Imperial Hubris: Why the West is Losing the War on Terror, Brassey’s, Washington DC, 2004, e James Bamford, A Pretext for War: 9/11, Iraq, and the Abuse of America’s Intelligence Agencies, Doubleday, Nova Iorque, 2004.
[22] David Talbot, How technology failed in Iraq, Technology Review (MIT), Novembro de 2004, p. 2 e seguintes.
[23] Gabriel Kolko, Anatomy of a War: Vietnam, the United States, and the Modern Historical Experience, The New Press, Nova Iorque, 1994, pp. 49-50.
[24] Só em 2005, o custo das guerras no Iraque e no Afeganistão aumentou 18 por cento relativamente a 2004, passando de 99,8 mil milhões de dólares para 117,6 mil milhões (“U.S. war costs surge 18%”, The Wall Street Journal, 8 de Março de 2006).
[25] Sondagens Angus Reid, 14 de Novembro de 2005, 24 de Fevereiro de 2006 e 2 de Março de 2006.
[26] USA Today, McLean (Virgínia), 23 de Outubro de 2003.
Gabriel Kolko
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/usa/usa136.htm

Sem comentários: