Segundo alguns, a ciência diz-nos como as coisas acontecem e a religião diz porquê. Não me parece, mas antes de elaborar quero esclarecer como entendo esta alegada diferença: os porquês são razões e propósito; os “comos” são causas e efeitos. Na pedrada que parte o vidro vemos uma relação entre causa e efeito que explicamos com um como. É a isso que querem restringir a ciência. No homem a correr para a casa de banho vemos um acto motivado por razões que se explica com porquês. A proposta é que mesmo que a ciência explique todas as relações de causa e efeito que originaram o universo ainda resta à religião dizer o porquê. Porque é que isto existe, qual é a razão, motivação e propósito disto tudo.
Eu proponho que razões e causas são fundamentalmente o mesmo. A quem discorda peço paciência, já passo à justificação. Mas primeiro quero explorar a hipótese que nós inventamos porquês para simplificar relações causais que não compreendemos. A pressão da urina activa nervos nos músculos da bexiga, os sinais chegam ao cérebro e causam padrões de actividade que constituem aquela sensação desconfortável e alteram o comportamento do homem. Falta-nos os detalhes do como e por isso simplificamos a coisa com um porquê. Correu para a casa de banho porque estava aflito.
Esta hipótese explica o desaparecimento de muitos porquês. Antigamente procurava-se porquês para a chuva e para a seca, para as doenças, os sismos, até para uns serem reis e outros escravos. A vontade dos deuses e o destino explicavam por razões aquilo cujas causas se desconhecia. Mas com a compreensão os porquês deram lugar aos comos. Não há razões e propósitos nas doenças ou no clima. Há causas e mecanismos. Até as desigualdades sociais deixaram de ser justificadas com porquês e passaram a ser descritas como efeitos de inúmeras causas.
Esta hipótese também explica a origem dos porquês. O desafio principal aos cérebros dos nossos antepassados era modelar os cérebros dos seus contemporâneos. Prever o que eles iam fazer e como iam reagir. Mas as relações causais no cérebro humano são tão complexas que nem hoje as compreendemos e um modelo mental de causas e efeitos não ia longe. A solução foi inventar os porquês, uma ilusão útil para simplificar problemas demasiado complexos. Não precisamos saber a anatomia da bexiga ou a fisiologia dos neurónios para perceber o porquê da pressa do homem, mas só com os detalhes é que poderemos compreender o como.
Uma justificação para a hipótese que os porquês se reduzem a causas e efeitos quando bem compreendidos é precisamente o seu poder explicativo. A hipótese alternativa não explica porque é que os porquês desaparecem assim que se compreende o como. Outra justificação é a incoerência de uma razão sem causa. O homem tem razões para ter pressa, mas essas razões são efeito de causas fisiológicas sem as quais não haveria razão para pressas. Uma razão por acaso parece contraditória. Por isto proponho que os porquês são uma questão falsa. São apenas uma invenção do nosso cérebro para cortar caminho por problemas complexos.
Mas admitamos que algures há porquês verdadeiros. Talvez no comportamento humano ou na criação divina do universo. Mesmo assim é incorrecto expulsar a ciência desse problema porque a ciência lida bem com porquês. Os arqueólogos tentam inferir as razões e propósitos por trás dos artefactos e construções. Os psicólogos lidam com porquês constantemente e a neuropsicologia tem feito grandes progressos na unificação de modelos de comos e modelos de porquês.
Finalmente, discordo que a religião seja apropriada para resolver este problema. É verdade que a religião ajuda a criar porquês. No fundo, inventámos os deuses para poder aplicar à natureza o mesmo modelo com que prevemos as acções do vizinho. Com razões, intenções, propósitos e todos esses atalhos mentais que evitam os detalhes de causas e efeitos. No entanto, os porquês que as várias religiões continuam a defender parecem tão ilusórios e desnecessários como os muitos que estas criaram no passado e que já ficaram pelo caminho.
Em suma, sou contra a ideia de dar os porquês à religião porque não é claro que o porquê sobreviva ao esclarecimento do como, porque a ciência também pode lidar com esses modelos e porque nada indica que a religião seja um método fiável para responder a estas questões.
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