terça-feira, setembro 30, 2008

Desequilíbrios estruturais do capitalismo actual

A actual crise económico-financeira internacional insere-se no marco de um ciclo longo recessivo, do qual o capitalismo não logrou sair desde o seu início, em meados da década de setenta do século passado. Sem essa inserção, fica difícil a apreensão do carácter dessa crise, das consequências que pode produzir e do cenário que deve surgir depois dela.
OS CICLOS E AS CRISES
O capitalismo vive, pela própria natureza do seu processo de reprodução, articulado por ciclos, curtos e longos. Estes coordenam os ciclos curtos, numa perspectiva expansiva, se a curva das subidas e descidas das oscilações curtas apontam para cima, recessiva, se para baixo, conforme a teoria do economista russo Kondratieff, retomada teórica e historicamente por Ernst Mandel.
No segundo pós-guerra, o capitalismo viveu a sua «idade de ouro», segundo Eric Hobsbawn, em que coincidiram virtuosamente a maior expansão concomitante das grandes economias capitalistas – Estados Unidos, Alemanha, Japão –, do chamado “campo socialista”, dirigido pela União Soviética, e por economias periféricas, como o México, a Argentina, o Brasil, com os seus processos de industrialização dependente. A economia capitalista não deixou de apresentar os seus ciclos curtos de crise, mas cada novo ciclo retomava a expansão e empurrava a economia para patamares cada vez mais altos.
Foi um ciclo longo expansivo comandado por grandes corporações internacionais de carácter industrial e comercial, apoiado por um sistema financeiro em expansão e por grandes transformações na produção agrícola. Um modelo hegemónico regulador – ou keynesiano ou de bem-estar, conforme se queira chamá-lo – incentivava os investimentos produtivos, tendia a fortalecer a procura interna de consumo, promovia o fortalecimento dos Estados nacionais e a protecção das suas economias.
As crises, como é típico no capitalismo, expressavam processos de super-produção ou de sub-consumo – conforme se queira chamá-las –, reflectindo o desequilíbrio estrutural desse sistema entre a sua – reconhecida já por Marx no Manifesto Comunista – enorme capacidade de expansão das forças produtivas, mas que se chocam constantemente com a sua incapacidade de distribuir renda na mesma medida daquela expansão.
Na sua fase final, o ciclo longo expansivo do segundo pós-guerra viu esse excedente, resultado acumulado da desfasagem entre produção e consumo, transformar-se em capital financeiro – os chamados euro-dólares –, que foi aproveitado por países como o Brasil para reciclar o seu modelo económico, diversificando a sua dependência externa e favorecendo a retomada da expansão económica interna, ainda antes do final do ciclo longo expansivo. Este factor – o golpe militar ainda no ciclo expansivo – diferenciou o cenário económico brasileiro do dos outros países da região, em que as ditaduras coincidiram com recessão, por já se darem no ciclo longo recessivo do capitalismo internacional.
Que características teve o final desse ciclo e o início do novo, de carácter recessivo? Tendo triunfado o diagnóstico de que a estagnação económica se devia ao excesso de regulamentações, o novo modelo centrou-se na desregulamentação, de que as privatizações, as aberturas para o mercado externo, as políticas de “flexibilização laboral”, de ajuste fiscal, foram expressões.
Duas consequências mais importantes devem ser recordadas aqui, para entendermos o carácter da crise actual e seus efeitos para os países latino-americanos. A primeira, o gigantesco processo de transferência de capitais do sector produtivo para o especulativo que a desregulamentação promoveu em escala nacional e internacional. Livre de travas, o capital migrou maciçamente para o sector financeiro e, em particular, para o sector especulativo, onde obtém muito mais lucros, com muito maior liquidez e com menos ou nenhuma tributação para circular.
Configurou-se assim, no modelo neoliberal, a hegemonia do capital financeiro, sob a forma do capital especulativo, fazendo com que mais de 90% dos movimentos económicos se dêem, não na esfera da produção ou do comércio de bens, mas na compra e venda de papéis, nas Bolsas de Valores ou de papéis das dívidas públicas dos governos.
Promoveu-se a financeirização das economias, o que significa, em primeiro lugar, a financeirização dos Estados, cujo primeiro e maior compromisso passa a ser o pagamento das dívidas, isto é, a reserva de recursos mediante o chamado “superávit primário” e a transferência maciça e sistemática de recursos do sector produtivo para o capital financeiro. Grandes grupos económicos têm à sua cabeça um banco, uma instituição financeira, e costumam ganhar mais nos investimentos financeiros que naqueles que deram origem às empresas que os compõem. Grande quantidade de pequenas e médias empresas entraram em processos de endividamento, dos quais não conseguem sair. Outras, assim como consumidores, não se atrevem a buscar empréstimos, pelo medo do endividamento, com as altas taxas de juros.
O capital financeiro passou a ser o sangue que corre pelas economias dos países, definindo o metabolismo que as preside. Um capital que tem na volatilidade, na sua extrema liquidez, um elemento essencial, inerente, aquele que permite deslocar-se rapidamente para onde pode ter maiores vantagens e, ao mesmo tempo, lhe atribui um grande poder de pressão, diante da fragilidade das economias que dependem estruturalmente dele.
AS CRISES NA FASE NEOLIBERAL
Dessas características decorre o carácter centralmente financeiro das crises no período neoliberal, como ficou evidenciado nas crises mexicana, asiática, russa, brasileira e argentina, entre outras. O sector financeiro canaliza para si os excedentes de capital, produto da desfasagem estrutural entre produção e consumo, agudizada na fase actual do capitalismo, em que a elevação da produtividade e a criatividade tecnológica continuaram a aprofundar-se, ao mesmo tempo que se deram processos de concentração de renda entre as classes sociais, entre países e regiões do mundo.
O poder devastador dessas crises e o potencial de contágio revelaram-se da mesma dimensão do tamanho da abertura das economias ao mercado internacional e ao peso que o capital financeiro passou a desempenhar em escala nacional e mundial. O México continuou a sofrer os impactos da crise de 1994 por muitos anos. O mesmo ocorreu com países do sudeste asiático. No Brasil, a crise de 1999 significou a passagem a anos de recessão, que só recentemente foram superados. Na Argentina, a crise teve consequências devastadoras do ponto de vista económico, financeiro, político e social.
São crises que se desatam a partir do elo mais frágil, mais sensível, do processo de reprodução – o sector financeiro –, mas que rapidamente se propagam pelo resto da economia, pelo papel central que esse sector passou a ter e pelos aspectos psicológicos em que assenta. Não por acaso o segundo livro de Francis Fukuyama se chamou Confiança, para denotar como as expectativas, positivas ou negativas, assumem força material no jogo especulativo.
A América Latina foi assim vítima privilegiada dessas crises, que não por acaso atingiram justamente as suas três economias mais fortes, que haviam sido exibidas como modelares – a mexicana, a brasileira e a argentina. Nos três casos a crise assumiu a forma de ataque especulativo, de crise financeira, que se alastra para o conjunto da economia. Os capitais especulativos valem-se do peso desestabilizador que têm na economia, para fazer valer essa posição, pressionando com uma saída brusca e maciça de capitais, acções governamentais ou simplesmente o jogo do mercado, lucrando enormemente com essas operações.
As crises anteriores tinham como cenários países da periferia, com efeitos que intensificaram a tendência para o enfraquecimento dos países globalizados e a intensificação da concentração de renda e de poder dos países globalizadores. Mesmo a crise na Rússia poderia ser caracterizada como a de uma economia tornada periférica, especialmente em meados da década de 1990. A excepção foi a ataque do mega-especulador George Soros à libra esterlina inglesa, mas acabou por ser um caso pontual, que não altera a regra geral de ocorrência das crises nas periferias.
No seu conjunto, como crises neoliberais, provocaram demandas de remédios neoliberais: mais abertura das economias – como se passou fortemente nos países do sudeste asiático –, mais empréstimos do FMI e as correspondentes Cartas de intenção, com aumento dos ajustes fiscais. A economia mexicana recebeu um empréstimo gigante dos Estados Unidos no momento da crise de 1994, inclusive porque se dava no próprio momento em que se assinava o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) e do surgimento da rebelião dos zapatistas em Chiapas. Como compromisso, o México usou esses recursos para pagar os empréstimos dos bancos norte-americanos e continuou a aprofundar o modelo neoliberal.
O governo brasileiro de FHC, frente à crise de 1999, elevou a taxa de juros a 49% e assinou a terceira Carta de intenções com o FMI, cujas consequências estenderam a recessão por vários anos. Na Argentina, a crise de explosão do modelo de paridade do peso com o dólar, produziu a maior regressão económica e social que o país conheceu em toda a sua história. O governo de Fernando de la Rua tentou manter o modelo herdado de Carlos Menem e com isso caiu com poucos meses do seu mandato presidencial.
A CRISE ACTUAL E SUAS CONSEQUÊNCIAS
A crise anterior da economia norte-americana deu-se em 2000, quando se desvanecia a ilusão de que a “nova economia” permitiria que o capitalismo não sofresse mais as suas crises cíclicas, seja porque a informática permitira prevê-las e permitira que fossem evitadas, seja porque novas procuras, como as de computadores, gerariam, da mesma forma que no caso dos automóveis, o lançamento anual de novos modelos, que estenderiam cada vez mais a procura. Naquele momento, o papel do mercado norte-americano no mundo continuava a ser determinante no mundo, transferindo os efeitos da sua recessão para o resto da economia mundial.
Desta vez, a crise norte-americana dá-se em um cenário internacional modificado. A contínua expansão de países emergentes – entre eles sobretudo a China e a Índia, mas também países latino-americanos, que mantêm ritmos constantes de crescimento, entre os quais particularmente o Brasil e a Argentina – amortece a diminuição da procura dos EUA e, pela primeira vez, a recessão da economia norte-americana não tem efeitos directos e devastadores sobre a economia mundial.
Porém, como essa crise se vê agravada com o aumento dos preços dos produtos agrícolas e a continuada crise do petróleo, constituindo-se, na verdade, numa tripla crise, os seus efeitos são mais profundos e extensos do que apenas uma crise cíclica da economia norte-americana. São afectadas então, não apenas as exportações para os Estados Unidos, mas também os importadores de energia e de produtos agrícolas, lista que, em uma ou outra proporção, afecta todos os países do mundo.
No entanto, como todo fenómeno de um sistema marcado pela extrema desigualdade de riqueza e de poder entre regiões e países e dentro de cada país, os efeitos das crises não são igualmente repartidos entre todos. Há ganhadores e perdedores, algozes e vítimas.
Como a crise está em pleno desenvolvimento, os seus alcances não podem ainda ser julgados em toda a sua plenitude e dão-se pugnas para ver quem consegue extrair vantagens, quem trata de perder menos, ainda não é possível saber com precisão os danos em toda a sua extensão e quem arcará com eles. É certo que o mundo sairá modificado desta crise, até mesmo porque toca em três pontos nodais das relações económicas e de poder actuais: dinheiro, energia e comida. No entanto, as estruturas de poder, de produção e de distribuição de riqueza reinantes, garantem resultados absolutamente diferenciados para distintas regiões e países como efeito das crises.
Na combinação entre aumento dos preços do petróleo, dos produtos agrícolas e diminuição da procura dos EUA e da Europa, os países mais pobres, que somam a grande maioria da África, da Ásia e da América Latina, perderão claramente, com fortes pressões recessivas, déficit na balança comercial e aumento do endividamento. Os países exportadores de petróleo e de produtos agrícolas com altas mais significativas, terão as suas situações minoradas, mas as pressões inflacionárias não poupam nenhum país e, com elas, as políticas recessivas voltam a ganhar peso.
Para a América Latina, os efeitos são mais pesados e directos para os países que continuam a depender mais fortemente do comércio com os Estados Unidos: o México, a América Central e o Caribe, em primeiro lugar. Em segundo lugar, os países com pautas exportadoras menos valorizadas ou aqueles que tiveram o seu ciclo de expansão económica excessivamente voltado para as exportações, em particular as economias mais abertas, entre elas as que têm tratados de livre comércio com os Estados Unidos, como o Chile, o Peru, além dos já mencionados México, Costa Rica e outros países centro-americanos e caribenhos. Relativamente menos afectados devem ser os países com pautas exportadoras mais diversificadas – seja nos produtos, seja nos mercados -, como o Brasil, em parte a Argentina, e os que participam dos processos de integração regional – seja o Mercosul, seja a ALBA. Para estes, as crises são uma oportunidade especial para acelerar e intensificar os processos de integração, de comércio, assim como nos planos financeiro e energético.
Seja pela combinação das crises, seja porque afecta profundamente os Estados Unidos, no momento em que, pela primeira vez, o seu peso na economia mundial decresce, o mundo e a América Latina em particular, terão fisionomias distintas, seja acelerando transformações já em andamento, seja dando início a novas dinâmicas, passadas as crises – cujas durações e profundidades ainda não podem ser medidas com toda a precisão.
http://infoalternativa.org/spip.php?article119

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