segunda-feira, outubro 20, 2008

A natureza antidemocrática do capitalismo estadunidense está a ser exposta

O desenvolvimento de uma campanha presidencial norte-americana simultaneamente ao desenlace da crise dos mercados financeiros oferece uma dessas ocasiões em que os sistemas político e económico revelam nitidamente a sua natureza.
É possível que a paixão pela campanha eleitoral não seja universalmente compartilhada, mas quase toda a gente pode sentir a ansiedade desencadeada pela execução hipotecária de um milhão de residências, e preocupações com os riscos que correm os postos de trabalho, as poupanças e os serviços de saúde.
As propostas iniciais de Bush para lidar com a crise cheiravam de tal maneira a totalitarismo, que não tardaram a ser modificadas. Sob intensa pressão dos lóbis, foram reformuladas «para o claro benefício das maiores instituições do sistema […] uma forma de desfazer-se de activos sem terem de ir à falência ou quase», como descreveu James Rickards, que negociou o resgate federal do fundo de risco (hedge fund) Long Term Capital Management em 1998, lembrando-nos de que estamos a caminhar em terreno conhecido. As origens imediatas do desmoronamento actual estão no colapso da bolha imobiliária supervisionada pelo presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, que sustentou os esforços da economia dos anos Bush através de gastos de consumo baseados em dívida, juntamente com a tomada de empréstimos no exterior. Mas as raízes são mais profundas. Em parte, residem no triunfo da liberalização financeira dos últimos 30 anos – quer dizer, libertar o mais possível os mercados da regulação estatal.
Estes passos aumentaram de forma previsível a frequência e a profundidade de severos reveses, que agora ameaçam desencadear a pior crise desde a Grande Depressão.
Também de forma previsível, os poucos sectores que extraíram enormes lucros oriundos da liberalização estão a apelar à intervenção maciça do Estado para salvar as instituições financeiras em colapso. Esse tipo de intervencionismo é um traço característico do capitalismo de estado, ainda que a escala actual seja inusual. Um estudo dos investigadores em economia internacional Winfried Ruigrok e Rob van Tulder descobriu, há 15 anos, que pelo menos 20 companhias entre as 100 primeiras do ranking da Fortune não teriam sobrevivido se não tivessem sido salvas pelos seus respectivos governos, e que muitas das restantes obtiveram ganhos substanciais através dos pedidos aos governos para “socializarem as suas perdas”, como ocorre hoje com o plano de resgate nos EUA, financiado pelo contribuinte. Tal intervenção pública «foi a regra, mais que a excepção, nos dois últimos séculos», concluíram.
Numa sociedade democrática efectiva, uma campanha política teria de abordar esses assuntos fundamentais, observando as causas e os remédios na sua base, e propor os meios através dos quais o povo que sofre as consequências pudesse chegar a exercer um controlo efectivo.
O mercado financeiro «subvaloriza o risco» e é «sistematicamente ineficaz», como escreveram há uma década os economistas John Eatwell e Lance Taylor, alertando para os gravíssimos perigos da liberalização financeira e mostrando os custos em que se já se tinha incorrido – e propondo soluções, que foram ignoradas. Um factor é a incapacidade de calcular os custos que recaem sobre aqueles que não participam nas transacções. Essas “externalidades” podem ser enormes. A ignorância do risco sistémico leva a que se corram mais riscos do que aconteceria numa economia eficiente, mesmo com medidas mais restritas.
A tarefa das instituições financeiras é assumir riscos e, se forem bem geridas, assegurar que as perdas potenciais para si próprias sejam cobertas. A ênfase está no “para si próprias”. Segundo as regras do capitalismo de estado, não lhes cabe levar em conta os custos para os outros – as “externalidades” de uma sobrevivência decente – se as suas práticas levarem a crises financeiras, como regularmente acontece.
A liberalização financeira tem efeitos muito para lá da economia. Há muito que se compreendeu que é uma arma poderosa contra a democracia. O livre movimento dos capitais cria o que alguns chamaram de “parlamento virtual” de investidores e credores, que controlam de perto os programas governamentais e “votam” contra eles, se forem considerados irracionais: para benefício do povo e não do poder privado concentrado.
Os investidores e credores podem “votar” através da fuga de capitais, de ataques às divisas e de outros dispositivos oferecidos pela liberalização financeira. Essa é uma das razões pelas quais o sistema de Bretton Woods, estabelecido pelos EUA e pela Grã-Bretanha depois da II Guerra Mundial, instituiu o controlo de capitais e regulou as moedas [1].
A Grande Depressão e a Guerra tinham despertado poderosas correntes democráticas radicais que iam da resistência antifascista às organizações da classe trabalhadora. Essas pressões tornaram necessário que se permitissem políticas sociais democráticas. O sistema de Bretton Woods foi, em parte, concebido para criar um espaço no qual a acção governamental pudesse responder à vontade pública – permitindo uma certa medida de democracia.
John Maynard Keynes, o negociador britânico, considerou que o estabelecimento do direito dos governos a restringir os movimentos de capitais era a mais importante conquista de Bretton Woods.
Num contraste dramático, na fase neoliberal após a ruptura do sistema de Bretton Woods na década de 1970, o Tesouro dos EUA passou a considerar a livre circulação de capitais como um “direito fundamental”, ao contrário de alegados “direitos” como aqueles garantidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos: saúde, educação, emprego decente, segurança e outros direitos que as administrações de Reagan e de Bush desdenharam como sendo “cartas ao Pai Natal”, “absurdos”, meros “mitos”.
Em anos mais afastados, as pessoas não constituíram um grande problema. As razões foram estudadas por Barry Eichengreen na sua história académica do sistema monetário internacional. Ele explica que, no século XIX, os governos ainda não estavam «politizados pelo sufrágio universal masculino, pela ascensão do sindicalismo e dos partidos trabalhistas parlamentares». Por conseguinte, os graves custos impostos pelo parlamento virtual podiam ser transferidos para a população em geral.
Mas, com a radicalização da população durante a Grande Depressão e a guerra antifascista, esse luxo já não estava disponível para o poder e a riqueza privados. Assim, no sistema de Bretton Woods, «os limites à mobilidade do capital substituíram os limites à democracia como fonte de isolamento às pressões do mercado».
O corolário óbvio é que, após o desmantelamento do sistema do pós-guerra, a democracia foi restringida. Tornou-se assim necessário controlar e marginalizar de algum modo a população, processos particularmente evidentes nas sociedades mais orientadas pelos negócios, como os EUA. A gestão das extravagâncias eleitorais pela indústria de relações públicas é uma ilustração disso.
«A política é a sombra dos grandes negócios sobre a sociedade», concluiu o maior filósofo norte-americano do século XX, John Dewey, e assim continuará a ser, enquanto o poder consistir «nos negócios para benefício privado através do controlo privado da banca, das terras e da indústria, reforçados pelo controlo da imprensa, dos actores da imprensa e de outros meios de publicidade e propaganda».
Os EUA têm efectivamente um sistema de um só partido, o partido dos negócios, com duas facções, republicanos e democratas. Há diferenças entre eles. No seu estudo Unequal Democracy: The Political Economy of the New Gilded Age, Larry Bartels mostra que durante as últimas seis décadas «os rendimentos reais das famílias de classe média cresceram duas vezes mais rápido sob os democratas que sob os republicanos, enquanto os rendimentos reais das famílias pobres da classe trabalhadora cresceram seis vezes mais rápido sob os democratas que sob os republicanos».
As diferenças também podem ser detectadas na actual eleição. Os eleitores deveriam tê-las em conta, mas sem ilusões sobre os partidos políticos, e reconhecendo que, de forma consistente ao longo dos séculos, a legislação progressista e o bem-estar social foram conquistadas por lutas populares, não ofertas vindas de cima.
Essas lutas seguem um ciclo de sucesso e de retrocesso. Devem ser travadas todos os dias, e não apenas uma vez em cada quatro anos, sempre com o objectivo de criar uma sociedade genuinamente democrática receptiva, das urnas ao posto de trabalho.
[1] O sistema de Bretton Woods de gestão financeira global foi criado por 730 delegados de todas as 44 nações aliadas na II Guerra Mundial, que compareceram a uma Conferência Monetária e Financeira organizada pela ONU no Hotel Mount Washington, em Bretton Woods, New Hampshire, em 1944. Bretton Woods, que entrou em colapso em 1971, era o sistema de normas, instituições e procedimentos que regulavam o sistema monetário internacional, sob o qual foi criado o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) (hoje uma das cinco instituições que compõem o Grupo do Banco Mundial) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), que passaram a funcionar em 1945. O traço principal de Bretton Woods era a obrigação de todos os países de adoptar uma política monetária que mantivesse dentro de valores fixos a taxa de câmbio da sua moeda. O sistema entrou em colapso quando os EUA suspenderam a convertibilidade do dólar em ouro. Isso criou a insólita situação em que o dólar se tornou a “moeda de reserva” para os outros países que faziam parte de Bretton Woods.
http://infoalternativa.org/spip.php?article188

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