terça-feira, outubro 21, 2008

O combóio da náusea

No mundo do G7, o clube dos países ocidentais "desenvolvidos" mais o Japão, começou o tormento pois subitamente acordou muito mais pobre. Todas as desesperadas soluções alternativas que estão a ser pensadas por governos e bancos centrais destinam-se a ultrapassar este facto espantoso, e nenhuma delas funcionará. As referências de tudo estão em mutação – acções, valores de títulos e de rendimentos, preços de commodities, ainda mais especialmente divisas – mas isto tende a disfarçar o facto básico do empobrecimento crescente e cada vez mais generalizado. Está o preço do petróleo nos US$80 na manhã de hoje? Óptimo. Excepto se a companhia que o emprega estiver prestes a encerrar e você enfrentar um período de férias forçadas a conduzir freneticamente em torno de Atlanta à procura de outro emprego, com poucas probabilidades de encontrar. Ou se estiver a viver de um fundo de pensões de reforma que acaba de perder 37 por cento do seu valor e estiver na hora de reabastecer o reservatório do óleo de aquecimento.

Quanto a isto, a Islândia é o caso típico do dia. Na pequena nação ilha com cerca de 320 mil almas brotou um sector bancário que fez prosperar as finanças do alguma-coisa-em-troca-de-nada. Em pouco mais de um mês, seus bancos implodiram como mini-estrelas mortas, deixando a Islândia com uma divisa pária. Como o país tem de importar quase tudo, as pessoas estão a esvaziar as mercearias de qualquer coisa que ainda exista nelas. É de se perguntar o que farão eles daqui a duas semanas. Daqui a dez anos talvez uns 32 mil habitantes possam ter abandonado o país, que estará a subsistir com sanduíches de gordura de baleia.

Talvez eu exagere um pouco, mas quem realmente sabe para onde vai tudo isto? Aqui nos EUA, o Tesouro, desfrutando novos poderes para fazer gastos discricionários aparentemente sem limites, começou a carregar dólares às pazadas em qualquer camião que acoste no seu cais. Os números são estarrecedores. A maior parte deste dinheiro está a ser sugada directamente pelo buraco negro da dívida e das margin calls de diferentes espécies. Esta é a riqueza anteriormente presumida e que agora tem de ser despresumida. Ele está a deixar o sistema, para nunca mais ser visto. Um modo prático de pensar acerca disto é encarar os empréstimos anteriores da nossa sociedade como tomadas contra o nosso próprio futuro. Portanto, estamos a ver o nosso futuro desvanecer-se num buraco negro – nosso futuro conforto, saúde e alimentação básica.

Esta é a espécie de fiasco que deita governos abaixo, impele sociedades a revoluções e principia guerras. Dentro de uns poucos meses a América estará cheia de irados perdedores económicos. Já não somos a mesma nação que se apinhava em torno de antigos aparelhos de rádio para ouvir as conversas de Franklin Roosevelt junto à lareira. Remontando a esse tempo, éramos sobretudo uma sociedade industrial altamente disciplinada, arregimentada, cheia de cidadãos que faziam o que lhes era dito para fazer, e sobretudo confiavam na autoridade. Hoje, somos uma nação de bárbaros tatuados, "consumidores" sem controle dos seus impulsos, com um sentido de cobiça avassalador, dirigida por um naipe de autoridades que vão desde um G W Bush ao panteão de jogadores-bilionários presidentes da Wall Street – agora a encaminharem-se para bunkers secretos com os seus krugerrandes [1] acumulados, vitela à milanesa congelada e esquadrões de segurança privada armados com carabinas XM-8.

Estou de acordo com a ideia de Nassim Nicholas Taleb – ler The Black Swan (2007) – de que ninguém realmente sabe alguma coisa. Construímos as nossas narrativas a fim de tentar explicar circunstâncias que estão a desenrolar-se não linearmente diante de nós, e algumas narrativas são mais plausíveis do que outras, dependendo do seu ponto de vista. Há infinitas narrativas. Esta é apenas a minha. As circunstâncias em que estamos a entrar parecem, por enquanto, tomar a forma de uma depressão deflacionária esmagadora tendo no topo, para culminar, a cereja de uma hiper-inflação – significando que inicialmente perdem-se empregos, rendimentos e pensões, mas que posteriormente até mesmo o pouco dinheiro que as pessoas conseguiram guardar – talvez sobretudo de esmolas do governo de uma espécie ou de outra – perde constantemente o seu valor. Seja qual for a maneira como misture as coisas, apenas se chega ao mesmo significado: uma sociedade mais pobre. Certamente não será uma sociedade de compradores recreativos, gente que vai andar pelos corredores das lojas Target à procura de velas de cheiro e enfeites para o lar. A hiper-inflação poderia tornar dívidas antigas sem significado, mas ela também tornaria o crédito sem significado e as despesas absurdas.

Dada a forma como a nossa sociedade evoluiu e está a operar – como uma infindável espiral ascendente de tomadas de empréstimos – já se pode ver como um terrível conjunto de coisas já não funciona, e como um terrível conjunto de pessoas já não trabalha nelas ou para elas. Talvez os governos do G7 consigam efectuar empréstimos aos níveis mais elevados, mas quem exactamente é capaz de tomar empréstimos além de companhias agora à beira da bancarrota – e por que continuar a emprestar-lhes? (Excepto para manter a pretensão de que "alguma coisa está a ser feita".) Além disso, há demasiado dinheiro tomado emprestado anteriormente que não será reembolsado, e o "resultado" de toda aquela dívida implica apenas a contínua aflição para vender todo e qualquer activo – de modo que os EUA tornam-se com efeito um país feira da ladra.

Pessoalmente, penso que toda a reengenharia no mundo dos números e dos índices não resolverá seja o que for, e realmente representa apenas uma espécie de neurose obsessiva-compulsiva relacionada com a numerologia que nada fará para reajustar nossas actividades diárias rumo à produção de coisas que tenham valor real e duradouro. Na minha narrativa, o destino dos países industriais depende realmente dos recursos energéticos. O preço do petróleo pode estar baixo neste momento – talvez devido ao desalavancamento dos hedge funds, bancos e investidores individuais, possivelmente combinado com uma percepção de "destruição da procura" – mas a geologia e a geopolítica do petróleo não mudou desde Junho último quando o barril estava a US$147. Suponhamos que o consumo de petróleo nos EUA baixe um milhão de barris por dia. Dentro dos próximos dois anos, seremos capazes de perder mais do que aquilo que declinam nossas importações só do México e da Venezuela. A estimativa mais recente da Agência Internacional de Energia é de um aumento da procura mundial apenas ligeiramente menor do que a estimativa anterior. Ainda assim, há um aumento líquido da procura. O consumo mundial de petróleo ainda excede a produção mundial neste momento, talvez de forma permanente. Finalmente, o actual mergulho dos preços do petróleo subitamente suspendeu os empreendimentos muito custosos na exploração e desenvolvimento que se esperava virem a aumentar a oferta mundial de petróleo. Tudo isto anuncia um agravamento da oferta de petróleo e problemas de distribuição nos próximos cinco anos, e em última análise petróleo muito mais caro e mais difícil de obter.

O que não podemos defrontar é a perspective de que podemos tornar-nos algo diferente de uma sociedade industrial de "consumidores". Minha narrativa inclui a convicção de que teremos perturbações na produção de alimentos para nós próprios quando a petro-agricultura fracassar, e uma vez que a sociedade não pode andar sem produção de comida, vejo esta actividade voltar outra vez a estar muito mais próxima do centro das nossas vidas diárias. Não estamos prontos para pensar acerca disso. O aspecto negativo da nossa não prontidão é a possibilidade de um bocado de americanos passar fome na próxima década.

A propósito, nada disto é um argumento para desespero, mas certamente constitui um apelo à necessidade de rever drasticamente as expectativas e de dar atenção séria à lista nacional de coisas "a fazer". Estamos a caminho de nos tornarmos um outro país, quer gostemos disso ou não. Nenhuma quantidade de augúrios numerológicos ou mesmo sentimentos de culpa irá mudar a situação. A grande questão para, digamos, os próximos 24 meses é: quão desordeiramente permitiremos que se efectue esta transição?
[1] Krugerrand: Moeda de ouro emitida pela África do Sul com o peso de 1 onça-troy (31,103 gr).

Jim Kunstler
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

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