sexta-feira, janeiro 30, 2009

No país da cunha



Quem se pode gabar, em Portugal, de nunca ter metido ou recebido uma cunha? Júlio Monteiro, tio do ex-ministro do Ambiente e actual primeiro-ministro José Sócrates, decerto que não. Ele achou a coisa mais natural do mundo meter uma cunha para que um seu amigo inglês chegasse à fala com o seu sobrinho. “Disse ao Charles para ligar para o Ministério do Ambiente e dizer que ia da parte do ministro José Sócrates", afirmou o tio referindo-se ao empresário Charles Smith. Só não achou natural que o amigo não lhe tivesse agradecido o favor: “Depois até fiquei chateado, porque usou o meu nome e nem obrigado me disse.”

Enquanto a investigação judicial prossegue a ocasião é boa para trazer à baila essa verdadeira instituição nacional – a cunha. Vivemos no país da cunha. Nenhum de nós está ao abrigo dela. Uns mais e outros menos, todos convivemos diariamente com pedidos, empenhos, influências. Governantes, familiares de governantes, amigos destes, amigos de amigos destes, funcionários menores, familiares de funcionários menores, amigos destes, amigos de amigos destes. Apesar de, como português, me ter há muito habituado ao fenómeno, fico sempre impressionado com a naturalidade com que se mete e se recebe uma cunha. Quem fica mal visto nunca é quem a mete, mas sim quem a recusa.

Nos negócios, a proliferação da cunha tem o nome algo eufemístico de “informalidade”, para a qual há até um medidor, o chamado “Índice da Percepção da Corrupção” da Transparency International: Portugal, que ocupa o 32.º lugar no “ranking” mundial de 2008 liderado pela Dinamarca, não tem feito grandes progressos. Se o tivesse feito, ter-se-iam talvez evitado as habilidades de alguns bancos e a nossa economia estaria bem melhor.

Por vezes a cunha toma o nome mais carinhoso de “jeitinho”. Usa-se também a expressão, igualmente afectuosa, de “mexer os cordelinhos”. Pede-se a alguém, familiar, amigo ou simples conhecido, um “jeitinho” ou para “mexer os cordelinhos”. E com o “inho”, tão típico da língua portuguesa, fica a cunha bastante subtil, desculpável e praticamente irrecusável. Esse intercâmbio social está profundamente arreigado, fazendo parte da nossa identidade. Somos peritos na troca de favores. E já não nos chega ser habilidosos, exportámos a habilidade. Em 1808, quando a corte atravessou o Atlântico, levámos o “jeitinho” para o Brasil, onde floresceu a olhos vistos. O “jeitinho” brasileiro não é mais do que a cunha portuguesa transportada para os trópicos.

Em 1870, em plena monarquia constitucional, Eça de Queiroz, candidato ao lugar de cônsul na Baía, Brasil, foi vítima de uma cunha. Não lhe bastou ter ganho o concurso para o qual se preparou com afinco já que o lugar acabou por ser dado a outro concorrente, um tal Manuel Saldanha da Gama, que beneficiou do “factor cunha”. Valha-nos que este insucesso redundou em inspiração literária, pois Eça, desempregado, começou com o seu amigo Ramalho Ortigão a escrever ”As Farpas”. Numa delas, em 1871, referindo-se ao seu caso, “farpeou” assim:
“Querido leitor: Nunca penses servir o teu país com a tua inteligência, e para isso em estudar, em trabalhar, em pensar! Não estudes, corrompe! Não sejas digno, sê hábil! E, sobretudo, nunca faças um concurso; ou quando o fizeres, em lugar de pôr no papel que está diante de ti o resultado de um ano de trabalho, de estudo, escreve simplesmente: sou influente no círculo tal e não me façam repetir duas vezes!”
E esta eloquente citação está longe de ser a única referência à cunha na literatura portuguesa. Vale a pena acrescentar uma outra, que foi publicada em 1933, no primeiro dos longos anos do Estado Novo, por Almada Negreiros, no “Diário de Lisboa”:
“Há um Portugal profissionalista, civil e insubornável! Há, sim senhores! Mas entretanto... Entretanto, a nossa querida terra está cheia de manhosos, de manhosos e de manhosos, e de mais manhosos.”
Mudam-se os tempos, mas não se mudam os maus costumes. Eça e Almada retrataram o país das cunhas e, ai de nós, continuamos parecidos com o retrato.
http://dererummundi.blogspot.com

Cunha & Cunha Ltda

O post do Carlos levantou uma objecção interessante de um leitor: que dizer das cartas académicas de recomendação, que até são mais comuns nos países desenvolvidos do que em Portugal? Não será afinal universal a corrupção da cunha, sendo pacóvio pensar que só em Portugal essa prática é estatisticamente elevada?

Para responder a isto é preciso compreender o que é realmente a cunha. A recomendação baseada na avaliação e conhecimento pessoal não é por si corrupta nem uma cunha; o que é corrupto e uma cunha é a avaliação e conhecimento pessoal favorecer um candidato pior; presumivelmente, foi o que terá acontecido a Eça de Queirós. Se eu estou perante dois candidatos a uma dada função — assistente de lógica, por exemplo — e não conheço qualquer um deles; se ambos têm aproximadamente a mesma prestação da prova que lhes faço; mas se um deles tem uma carta de recomendação de alguém em cujo juízo académico confio, vou favorecer essa pessoa. Nada há de corrupto nisto: é antes uma forma perfeitamente justificada de escolher. Mas seria corrupto escolher um candidato objectivamente pior, só por ser sobrinho de um amigo meu: pois neste caso nem sequer é academicamente relevante o grau de parentesco nem estou a ter em consideração o meu amigo por força da minha confiança no seu juízo académico, mas apenas por ser meu amigo.
Espero que estas distinções sejam esclarecedoras.
http://dererummundi.blogspot.com/

Sem comentários: