O PÚBLICO foi conhecer a equipa do jornal televisivo que o Governo e o PS dizem estar por trás de uma "campanha negra". Manuela Moura Guedes defende o Jornal Nacional e diz que nunca viu um Governo "que lidasse tão mal com a liberdade de imprensa". Especialistas comentam
É apenas mais uma de muitas, mas esta mensagem parece ter vindo mesmo a calhar para a conversa que se segue. Um telespectador escreveu a Manuela Moura Guedes para lhe dizer que deixou de ir ao cinema e jantar fora à sexta-feira para poder acompanhar o jornal da TVI desse dia, o tal que nos últimos tempos tem andado nas bocas do mundo. Porque foi alvo de queixas junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e porque o Partido Socialista (PS) o aponta a dedo como autor de uma "campanha negra" contra o Governo e o primeiro-ministro, José Sócrates.
A carta, escrita à mão, é mostrada pela própria Manuela Moura Guedes, apresentadora do Jornal Nacional 6.ª Feira (JN6), como exemplo das muitas mensagens que recebe diariamente. "Até me sinto mal", garante. "Ser elogiada por fazermos aquilo que é normal em jornalismo só pode deixar-me preocupada. O que aqui fazemos é tentar ir mais fundo, não deixar cair os temas, não é nada de extraordinário. Só o é porque a informação em Portugal está um deserto e isso merecia que se reflectisse sobre o assunto."
Ao escolher uma linha editorial que valoriza a temática política e que evidencia o que corre mal no poder, o JN6 da TVI coloca-se estrategicamente no lugar de alvo das críticas. Mas também ganha na visibilidade, seja junto do público, seja nos outros media, considera Felisbela Lopes, investigadora em comunicação na Universidade do Minho.
Sendo uma espécie de semanário, com uma equipa dedicada em exclusivo, o JN6 aprofunda os temas abordados nos últimos dias e apresenta investigação que é depois retomada por outros órgãos de comunicação social. Houve mesmo ocasiões em que trabalhou em conjunto com o semanário Sol, especialmente no caso Freeport.
É um "jornalismo multiplicador de polémicas" e essa "noticiabilidade deriva de vários factores: ao fim-de-semana há poucas notícias 'frescas', a oposição política critica os temas e depois o Governo aparece a criticar a crítica da oposição", numa espécie de círculo vicioso, descreve a docente. Ou seja, lança-se uma polémica na sexta-feira à noite e ela prolonga-se nas manchetes e títulos do fim-de-semana de jornais, rádios e televisões.
Manuela Moura Guedes não se tem cansado de afirmar em entrevistas que "um dos seus objectivos é incomodar o poder e manter uma agenda quente da actualidade", lembra Francisco Rui Cádima, outro investigador dos media e ex-presidente do Observatório da Comunicação. Esta linha editorial "não é uma opção, é uma motivação": "Ela quer fazer aquilo que não vê nos outros canais". Cádima diz mesmo que não conhece exemplos de telejornais deste género em outros canais europeus.
O estilo e a substância
O JN6 "quer ser um contrapoder assumido, fazendo o escrutínio da vida pública e política". E provoca tanta polémica porque ultimamente "o jornalismo em geral tem vindo a perder a sua dimensão de quarto poder", analisa Rui Cádima. Moura Guedes não podia ser mais coincidente na sua visão: "O jornalista tem de ser contrapoder, o que não quer dizer antipoder. Tem de ser incómodo, pedir responsabilidades. É por isso que se fala em 'quarto poder', o jornalismo tem de estar vigilante. E isso não tem a ver com quem está no poder".
Nos últimos anos a informação da TVI tem ganho visibilidade e notoriedade devido a uma linha editorial que escrutina a acção do Governo - e esse escrutínio é agora levado ao seu expoente máximo no JN6. Os resultados dessa afronta ao poder são exacerbados pelo facto de a oposição política ser pouco activa, afirma Felisbela Lopes, acrescentando que os partidos acabam por ir atrás das notícias e sobretudo daquelas que são contra o Governo, citando-as nos debates, por exemplo.
Mas não é apenas o conteúdo do que se presta a polémicas. "Há uma componente de espectáculo pela forma exuberante de apresentar as notícias", diz Felisbela Lopes. A atitude desinibida e muito interventiva de Manuela Moura Guedes face à câmara, o volume da voz e o tom inquisitório com que faz perguntas a convidados, a linguagem agressiva e os trejeitos faciais depreciativos quando remata uma peça, mostram uma posição de arrogância que tem dupla consequência. Parte dos seus espectadores venera-a por se sentirem "vingados" nesta consecutiva interpelação ao poder; para outros, essa atitude retira seriedade ao jornalismo do JN6.
"Aquele Jornal Nacional é frontal e desassombrado face ao poder e por isso sofre pressões. Mas, para levar a sua estratégia até ao fim, é preciso dar-lhe credibilidade." Como? "Isso passa por eliminar os apartes, os comentários, as interpretações da pivot e mudar a forma como é apresentado. O que, na Manuela Moura Guedes, não é fácil - se não mesmo impossível", lembra Cádima. Na passada sexta-feira, por exemplo, a apresentadora falou num anúncio da RDP a "achincalhar" as manifestações e, logo a seguir, ainda no mesmo tema, mencionou a biografia de José Sócrates escrita pela jornalista Eduarda Maio (que dava voz ao anúncio) como tendo o "encantador" título de Menino de Ouro. Excessos ou estratégia?
Ela aceita críticas que têm a ver com a sua presença no ecrã, mas não compreende as que se dirigem ao trabalho jornalístico que apresenta. "As pessoas não podem confundir o estilo com a substância. Se eu tenho uma maneira de exteriorizar, digamos, o meu feitio, nunca me esqueço que sou profissional e não abdico dos meus princípios, da minha consciência deontológica." E depois há o trabalho que é feito semana após semana. "Nunca damos notícias sem as confirmarmos, não as damos para incomodar. Damo-las porque somos jornalistas e é essa a nossa função."
Pode não se gostar do seu estilo truculento em frente às câmaras, ou até esgrimir com um passado (fez publicidade, foi deputada independente pelo CDS-PP), mas é inegável que a pivot fala com paixão das questões ligadas ao jornalismo. "Sofro mesmo com isto", repete, ao longo de uma hora de conversa na sala onde, minutos antes, a sua equipa lançou mais uma semana de trabalho.
E é este conceito que marca a diferença. Em alguns jornais, a existência de gabinetes de jornalismo de investigação sempre foi considerada normal e saudável. Mas, em televisão, a ideia de criar uma espécie de semanário dentro da rotina diária de uma estação de televisão generalista agitou as águas. Na RTP e na SIC também há jornalistas que se dedicam a fazer trabalhos mais aprofundados, mas aqui, em Queluz de Baixo, há toda uma equipa canalizada para um noticiário específico: o que começa invariavelmente com a frase: "Boa noite, eu sou a Manuela Moura Guedes".
Críticas e queixas
São quase 17h00 de segunda-feira e a reunião já começou atrasada, até porque a própria coordenadora falhou na pontualidade. Numa sala lateral da redacção da TVI, há onze pessoas à volta de uma mesa, "presidida" por Manuela Moura Guedes em estilo informal e bem-disposto (pelo menos enquanto os "intrusos" do PÚBLICO estão presentes). Circulando na direcção dos ponteiros do relógio, sentam-se António Prata (editor), Pedro Veiga, Pedro Rosmaninho, Rui Araújo, Carlos Enes, Vítor Bandarra (editor), Filipe Mendonça, Cristina Carranca (planeamento), Nuno Ramos de Almeida e Hugo Matias. Há quem reclame o agendamento da questão da "paridade". "Querem mais gajas...", explica, com uma gargalhada, a líder da equipa.
Estas pessoas encontram-se à segunda-feira e, em alguns casos, só voltam a estar juntas à sexta, para o jornal. Dá-se-lhes tempo, pedem-se resultados. Muitas das notícias e reportagens que vão para o ar são incómodas. Para o PS e o seu Governo, mas também para outros sectores, como os ligados aos casos do BPN ou Portucale.
Provocação: mas há alguma atenção especial a José Sócrates? Manuela Moura Guedes nem hesita: "Não tenho culpa que o actual primeiro-ministro tenha um passado recheado de episódios que vale a pena investigar! Estão constantemente a aparecer... Não vou investigar porque é o primeiro-ministro?! Pelo contrário: ele tem de ser ainda mais escrutinado do que os outros."
E as reacções? Como é ser apontado a dedo como autor de uma "campanha negra"? José Sócrates disse no Congresso do PS que "quem governa é quem o povo escolhe, e não um qualquer director de jornal [presume-se que falava de José Manuel Fernandes, director do PÚBLICO] ou uma qualquer estação de televisão". José Lello foi mais directo em declarações à agência Lusa: "[O Jornal Nacional apresentado por Manuela Moura Guedes] faria sucesso numa República das Bananas. [A sua] falta de objectividade e de respeito pelos valores mínimos de isenção é um escândalo".
A pivot da TVI respira fundo. "Já passei por vários governos e nunca vi nenhum que lidasse tão mal com a liberdade de imprensa", atira. Ganha balanço: "Vivemos um cenário complicado para o jornalismo, mas também para a política. Há outros episódios sem ser com jornalistas... É a aplicação da velha máxima 'Quem não está comigo está contra mim'... Mas essa tem direitos de autor e achei que já estava arrumada. É preocupante que se recupere".
Entretanto, há quatro queixas na ERC contra o JN6. Rui Cádima desvaloriza-as: "Depois de haver críticas e queixas da governamentalização dos telejornais do serviço público e a ERC concluir que não há nada para investigar, e quando a ERC transforma as pressões feitas sobre os media para não publicarem notícias sobre o primeiro-ministro em meras démarches [foi a classificação usada na deliberação pela ERC], então temos que pensar que as pressões jornalísticas no JN6 também são meras démarches".
Toda esta crispação acaba por provocar um sorriso a Manuela Moura Guedes: "Nunca tive um ministro ou secretário de Estado para ser entrevistado em estúdio. Convidamos, mas não aceitam. É óbvio que este era um jornal a que o Governo não queria dar importância. E agora, com estas acusações, até lhe dá uma importância excessiva..."
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