É um curioso sintoma de consenso no actual transe de zumbificação do público americano e dos seus auditores nos media considerar que algo como uma "recuperação" estaria a caminho. E, como os acontecimentos obrigam a repetir, isto exige a pergunta: recuperação para o que? Para a Wall Street contabilizar lucros estupendos através da lavagem do "risco" libertando-se de maus empréstimos com novas emissões automáticas de papel titularizado? Duvido disso, pois não sobra nem um fundo de pensão entre San José e Bratislava que se atreva a tocar neste material sequer com uma vara, mesmo se ele pudesse ser transformado e embalado em edições para coleccionador. Significará isto que os (assim chamados) "consumidores" americanos estão por enquanto a aguardar vendas de écrans planos de TV já com os seus cartões de crédito abertos na mão como se fossem cartas de baralho, prontos para a acção? Não é muito provável com o incumprimento maciço que se verifica nesta terra de detentores de cartões, e com metade do stock electrónico do país a caminho da Lista Craig [1] . Estamos nós à espera de mais constelações de novos subúrbios inseridos nas zonas argilosas de Dallas e Minneapolis, completados por novas faixas rodoviárias para acesso a lojas de retalho e entretenimento? Vá para a unidade de cuidados intensivos da banca e pergunte (se puder) aos fracassados construtores de casas e às companhias de investimento imobiliário que estão ligados aos aparelhos de manutenção em vida quando é que esperam acelerar os seus tractores.
A ideia de que estamos prestes a retomar o insano comportamento que induziu o actual mal-estar da economia é tão absurda que só pode ser ouvida nos jantares do corpo docente da Ivy League [2] . E se a América não está a perceber onde parou dezoito meses atrás – a orgia de gastar futuros direitos a uma riqueza que era improvável aumentar – então qual é o nosso destino? Com base naquilo que sai cá para fora dos órgãos de pensamento público, parece que não queremos pensar nisso.
São tantas as forças que se postam contra um retorno ao "normal" anterior que seremos felizes, daqui a outros dezoito meses, por ainda estarmos a falar inglês e a celebrar o Natal. O que é "extraordinário" é um panorama de problemas críticos que se reforçam mutuamente tendo a ver sobre como vivemos neste continente. Tal como a obesidade, as doenças cardíacas e as diabetes que assolam o público, estes problemas são desordens decorrentes de hábitos e estilos de vida e a única "cura" possível é uma revisão geral dos mesmos. Com o princípio da Primavera e os aperitivos de queijo e as corridas de camiões monstros e as corridas de carros da Nascar e a cerveja dos drive-ins a acenar, poderá o público desviar a sua atenção destas preocupações infantis para salvar o seu próprio traseiro?
Até agora, a parte mais gritante do fiasco económico é a ausência de qualquer espírito galvanizante entre os milhões que estão a ficar esmagados na trágica dissolução das nossas relações com o dinheiro. Será interessante ver, por exemplo, se há qualquer alvoroço sobre a história em evolução do último ataque da Goldman Sachs ao Tesouro dos EUA, depois de contabilizar milhares de milhões em pagamentos financiados pelo contribuinte canalizados através da AIG, com base em credit default swaps duplamente garantidos. Tais truques mágicos são compreensivelmente difíceis de acompanhar, mas uma dúzia ou mais de procuradores federais com uma capacidade mediana em cálculo diferencial pode investigar o rastro que vai do computador de Ben Bernanke à máquina de cappucino de Lloyd Blankfein [3] .
Algo semelhante se pode dizer em relação às revelações da semana passada quanto à conexão do conselheiro económico da Casa Branca, Larry Summers, com um certo número de hedge funds que arrastam milhões para dentro dos seus bolsos fundos por aparecerem uma vez por semana a fim de apregoarem as suas "inovações" – sem mencionar as suas sombrias visitas ao comboio da alegria da Goldman Sachs mesmo depois de ele subscrever a campanha de Obama. Enquanto os mercados de acções parecerem andar – não importa o que mais esteja a acontecer na América – ninguém prestará muita atenção a estas realidades desagradáveis.
A partir deste momento, e estou a observar a loja de jardinagem, ninguém pode deixar de perceber os muitos estilos de forcados que estão à venda. A minha suposição é que o actual estado de espírito de paralisia pública dissolver-se-á numa mancha de sangue e escarro em algum momento entre o Memorial Day [25 de Maio] e o Quatro de Julho, mesmo com o Nascar em plena actividade e a multiplicação das fileiras de desempregados perdidos em êxtases de barulho de motores e aperitivos de frituras de milho. Não são precisas muitas pessoas determinadas e iradas para criar um bocado de prejuízo numa sociedade complexa.
A VINGANÇA DO PICO PETROLÍFERO
Na agenda do segundo trimestre de 2009 há rumores agourentos nos sectores petrolífero e alimentar. Um semestre de preços de petróleo esburacados dizimou a indústria petrolífera e estamos a correr a 100 milhas por hora [161 km/h] directamente para um despenhadeiro, para uma nova espécie de crise de abastecimento – mesmo que a produção industrial e as exportações globais continuem moribundas. Tantas plataformas perfuradoras estão a ser desactivadas que a própria indústria petrolífera parece estar a preparar-se para a sua própria morte, o investimento na exploração e na descoberta contraiu-se com os mercados de crédito e o mundo pode nunca mais recuperar-se desta longa interrupção de um ano na actividade da indústria petrolífera – tradução: o pico petrolífero está a morder outra vez, agora com vingança. O pico parecerá mais aguçado e a curva ampla do esgotamento futuro parecerá mais íngrime e implicará uma ameaça a toda empresa globalizada e de escala continental no mundo conhecido.
Tantos elementos terríveis estão a perfilar-se em torno do nosso sistema de produção alimentar (isto é, agricultura), desde a seca generalizada e o esgotamento da água à escassez de "inputs" (especialmente fertilizantes) e à dificuldade na disponibilidade de crédito, que todos nós estamos a uma colheita de distância de algo que fará o "Triunfo da Morte", de Pieter Bruegel o Velho parecer em comparação com a festa anual do Oscar da Vanity Fair.
Barack Obama, simpático como é, faria melhor se abandonasse suas pretensões acerca de relançar a velha economia do consumidor, despedisse os palhaços e parasitas da Wall Street que estão a fazer este exercício fútil e começasse a preparar Bote Salva-vidas da Economia dos EUA a fim de reduzir a escala e o âmbito das nossas despesas de modo a podermos sobreviver ao cerco da austeridade que se aproxima. Entretanto, fico contente por ele finalmente ter conseguido um cão para a Casa Branca, porque assim o presidente saberá perfeitamente para onde se virar em Washington se quiser algum amor e afeição genuínos.
[1] Craigslist: rede online de anúncios classificados (empregos, vendas, trocas, serviços, etc).
[2] Ivy League: grupo de universidades reputadas nos EUA (Harvard, Brown, Cornell, Yale, Princeton, University of Pennsylvania, Dartmouth, Columbia)
[3] Lloyd Blankfein: presidente da Goldman Sachs.
Jim Kunstler
http://resistir.info/
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