segunda-feira, julho 13, 2009

Em defesa da escola pública

É à República que se deve a invenção da escola pública. Esta dívida é dupla: a república, não só a inventou como instituição, mas também como conceito. Nisso, a escola pública não é apenas um objecto institucional e político; é também um objecto de pensamento.

Se a instituição escolar é tributária da história e das suas determinações contingentes, a escola pública, como objecto filosófico é tributária de princípios que se desdobram em virtude da sua única necessidade e que articulam uma concepção do político a uma concepção do saber, encontrando o seu ponto de ancoragem na epistemiologia cartesiana e na enciclopédia das Luzes.

Se a ligação entre laicidade e escola pública é uma ligação poderosa, é porque aquele princípio intervém, na constituição da escola pública, a um duplo nível: o político.jurídico, mas igualmente a um nível mais fundamental e filosófico. No plano jurídico, a laicidade (como princípio) tornou possível a secularização da escola, operação que a faz existir como instituição pública.

Sabe-se que a história da instituição escolar foi fortemente marcada pela luta contra a Igreja, que no anterior regime (a monarquia), detinha o monopólio do ensino.

Arrancando o ensino às forças que queriam reduzi-lo a uma empresa de edificação das almas, os republicanos instituiram a escola pública, lugar no qual os funcionários são submetidos à obrigação da neutralidade. Mas, a escola pública é muito mais que uma instituição neutra: a laicidade não é apenas um princípio exterior que a protege dos interesses particulares e do proselitismo religioso; é constitutiva da escola ela mesma. É a razão pela qual a escola pública é a única instituição que entende a obrigação da neutralidade aos “usuários”, quer dizer, aos alunos.

Na escola, os alunos são levados a realizar a operação que está no princípio, ele próprio, do regime de laicidade: a constituir-se como átomos desligados das estruturas moleculares nas quais estão presos alguns (ligações familiares ou comunitárias), não para se deligarem definitivamente, mas para os colocar à distância e trabalhar assim para limpar o seu pensamento das opiniões, ver preconceitos, que o alienam.

Pela confrontação aos saberes, pela longa sinuosidade das humanidades, o aluno é convocado dividir-se, divisão sem a qual nenhuma reforma do pensamento é possível.

O espaço escolar, reduzido a esse lugar que é a classe, é, aí, um espaço isomorfo ao da associação política. A classe é uma “classe paradoxal” onde os sujeitos existem não porque os particulariza e os determina socialmente, mas porque os distingue, quer dizer, pelo que os singulariza; pelo gosto por tal ou tal matéria, pelo talento em tal disciplina, pela sua paixão por tal obra.

Graças à intelecção dos saberes que a escola transmite, os alunos fazem a experiência conce«reta da liberdade; compreendem palas únicas forças do seu entendimento, e nada, então, lhes dita o que pensam. Fazendo isto, os alunos fazem a experiência concreta da igualdade: não são mais indivíduos determinados socialmente, mas sujeitos convocados para o mesmo esforço e as mesmas exigências. Poder-se-ia ir ao ponto de dizer que fazem também, na escola, a experiência da freternidade, um tanto de camaradagem (ninguém tem necessidade da escola para isso.)

A invenção da escola conforme aos princípios republicanos exigia a construção dum novo paradigma. Entende-se aqui por paradigma um conjunto de propostas ou conceitos simples, ocupando o lugar de fundamento e operando como modelo. O paradigma republicano pode ser enunciado a partir dos três conceitos seguintes:

· A escola tem por fim a liberdade
· Não há liberdade possível sem instrução
· A instrução consiste numa transmissão razoável de saberes

O primeiro pressupõe que um cidadão livre é um cidadão esclarecido. Tem por implicação a universalidade da escola; se a liberdade é o primeiro fim que deve ser visado pela política, então todos os indivíduos deverão ser instruídos. Daí ressalta a necessidade de criar uma instrução pública; se a instrução é um direito de crença, então a escola deve existir como uma instituição colocada so a égide da esfera da autoridade pública.

O segundo conceito pressupõe que a ignorância é uma fonte de alienação. Se a escola deve instruir, é porque o saber é em si mesmo libertador; liberta da tutela dos que sabem e que poderiem aproveitar-se do poder que lhes confere o saber.

O terceiro pressupõe que todo o saber não faz objecto duma instrução; há saberes que não são da esfera escolar; este último devendo privilegiar aquelees cuja mestria permite encarar todos os campos do conhecimento.

Destes três conceitos ressalta a seguinte consequência: o lugar natural da escola é a classe, a aula. A instrução supõe um local de abrigo dos barulhos do mundo e no qual os aberes podem ser empregues em virtude dos seus princípios, segundo a ordem racional.

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