domingo, janeiro 31, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

Os Homens são iguais por natureza; quer dizer que têm todos o mesmo porte, a mesma beleza, o mesmo génio, a mesma virtude? Não: é então a igualdade política e civil que se quer designar. Neste caso bastava dizer-se: Todos os homens são iguais à face da lei.
Mas o que é a igualdade perante a lei? Nem a Constituição de 1790, nem a de 93, nem a carta outorgada, nem a carta aceite a souberam definir. Todas nos legavam uma desigualdade de riqueza e casta ao lado da qual era impossível encontrar a sombra de uma igualdade de direitos. Sob este ponto de vista pode dizer-se que todas as nossas constituições foram a expressão fiel da vontade popular: vou prová-lo.
Outrora o povo estava excluído dos empregos civis e militares: acreditou-se numa maravilha inserindo este artigo pomposo na Declaração dos direitos: «Todos os cidadãos são igualmente admitidos nos empregos; os povos livres só conhecem como motivo de preferência para as suas escolhas as virtudes e os talentos.»
Alguns com certeza que admiraram coisa tão bonita: admiraram um disparate. Quê! o povo soberano, legislador e reformador, não vê nos empregos públicos mais que gratificações, passe a palavra, esmolas! E é porque os olha como fonte de proveito que estatui sobre a admissibilidade dos cidadãos. Para quê esta precaução se nada houvesse a ganhar? Ninguém se lembra de proibir a carreira de piloto a quem não tiver sido astrónomo e geógrafo, ou impedir um gago de ser actor de teatro e ópera. Também aqui o povo foi o imitador dos reis: quis dispor de lugares lucrativos em favor dos amigos e aduladores; infelizmente, e este último traço completa a semelhança, o povo não está à cabeça dos benefícios mas estão-no sim os mandatários e representantes. Também não tiveram o cuidado de contrariar a vontade do bondoso soberano.
Este artigo edificante da Declaração dos direitos, conservado pelas Cartas de 1814 e 1830, supõe várias espécies de desigualdades civis, o que significa desigualdades perante a lei: desigualdade de castas, visto que as funções públicas não são procuradas senão pela consideração e proventos que conferem; desigualdade de riqueza, pois se se tivesse querido que as fortunas fossem iguais, os empregos públicos teriam sido deveres, não recompensas; desigualdade de merecimento, não definindo a lei o que entende por talento e virtudes. Sob o Império, a virtude e o talento não eram mais que a coragem militar e a devoção pelo imperador:
isso viu-se quando Napoleão criou a sua nobreza e tentou uni-Ia à antiga. Hoje o homem que paga duzentos francos de impostos é virtuoso: o homem hábil é um ratoneiro honesto, aliás estas verdades são triviais.
Por fim o povo consagrou a propriedade... Deus lhe perdoe, porque ele não sabia o que fazia. Eis que expia há cinquenta anos um miserável equívoco. Mas como é que o povo, cuja voz é a de Deus e cuja consciência não saberia desfalecer, se pôde enganar? como é que caiu no privilégio e servidão ao procurar a liberdade e a igualdade? Sempre por imitação do regime antigo.
Outrora a nobreza e o clero não contribuíam para as despesas do Estado senão a título de ajuda voluntária e doações; os seus bens eram inacessíveis mesmo para pagamento de dívidas: enquanto o plebeu, sobrecarregado de tributos e impostos era incomodado sem descanso, tanto pelos cobradores do rei como pelos dos nobres e do clero. O intransmissível, colocado no lugar de coisa, não podia testar nem herdar; era como os animais, cujos serviços pertencem ao senhor por direito de acessão. O povo quis que a condição de proprietãrio fosse igual para todos; que cada um pudesse gozar o dispor livremente dos seus bens e lucros, do fruto do seu trabalho e indústria. O povo não inventou a propriedade; mas como ela não existia para ele da mesma forma que para os nobres e tonsurados, decretou a uniformidade desse direito. As formas acerbas da propriedade, a corveia, a intransmissibilidade, o despotismo, a exclusão dos empregos, desapareceram; o modo de gozo foi modificado: conservou-se o fundo. Houve progresso na atribuição do direito; não houve revolução.
Eis três princípios fundamentais da sociedade moderna que os movimentos de 1789 e 1830 consagraram: 1.º - Soberania da vontade do homem e, reduzindo a expressão, despotismo; 2.º - Desigualdade de riquezas e castas; 3.º - Propriedade: acima da Justiça, invocada sempre e por todos como o génio tutelar dos soberanos, nobres e proprietários; a Justiça, lei geral, primitiva e categórica de toda a sociedade.
Ter-se-á de saber se os conceitos de despotismo, desigualdade civil e propriedade estão; ou não em conformidade com a noção primitiva do justo, se são uma dedução necessária dela, manifestada de forma diversa segundo o caso, o lugar e a relação entre as pessoas;

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