segunda-feira, abril 26, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

§ 2.º - Do primeiro e do segundo grau da sociabilidade

Insisto no facto que acabo de assinalar e que é um dos mais importantes da antropologia.
A tendência de simpatia que a sociedade provoca é, por natureza, cega, desordenada, sempre pronta a esgotar-se no impulso do momento, sem atenção aos direitos anteriores, sem distinção de mérito ou prioridade. É o cão bastardo que segue indiferentemente todos aqueles que o chamam; é a criança de mama que toma todos os homens por papás e cada mulher por alimentadora; é todo o ser vivo que, privado da sociedade de animais da sua espécie, se agarra a um companheiro de solidão. O carácter fundamental do instinto social torna insuportável e até odiosa a amizade de pessoas levianas sujeitas a entusiasmarem-se por cada nova cara, amáveis a torto e a direito, e negligenciando as afeições mais antigas e respeitáveis por uma ligação de passagem. O defeito de tais seres não está no coração: está no senso. Neste grau de sociabilldade é uma espécie de magnetismo que a contemplação de um ser parecido connosco desperta mas cujo fluxo nunca sai do que o experimenta; que pode ser recíproco, não comunicando, amor, boa-vontade, piedade, simpatia, chamem-lhe como quiserem, nada tem que mereça estima, nada que eleve o homem acima do animal.
O segundo grau da sociabilidade é a justiça, que se pode definir, reconhecimento de uma personalidade igual à nossa em outrem. É-nos comum com os animais quanto ao sentimento; quanto ao conhecimento apenas nós podemos fazer uma ideia completa do justo, o que, como dizia há pouco, não muda a essência da moralidade. Veremos dentro em pouco como o homem se eleva a um terceiro grau de sociabilidade que os animais são incapazes de alcançar. Mas antes devo demonstrar metafisicamente que sociedade, justiça e igualdade são três termos equivalentes, três expressões que se traduzem e cuja conversão mútua é sempre legítima.
Se, no tumulto de um naufrágio, escapado numa barca com algumas provisões, me aperceber de um homem lutando contra as ondas, sou obrigado a socorrê-lo?
- Sim, sou obrigado a isso sob pena de me tornar culpado, em relação a ele, de prejudicar a sociedade, de homicídio.
Mas sou igualmente obrigado a partilhar com ele as minhas provisões?
Para resoIver esta questão é preciso inverter os termos: Se a sociedade é obrigatória para a barca é também obrigatória para os víveres? Sem dúvida; o dever de associado é absoluto; a ocupação das coisas por parte do homem é posterior à sua natureza social e conserva-se-lhe subordinada; a posse não pode tornar-se exclusiva senão a partir do instante em que a permissão de ocupar é dada a todos por igual. O que torna aqui o nosso dever obscuro é a faculdade de previsão que, fazendo-nos recear um perigo eventual, nos leva à usurparão e nos torna ladrões e assassinos. Os animais não calculam o dever do instinto nem os inconvenientes que daí podem resultar para si próprios: seria estranho que a inteligência se tornasse para o homem, o mais sociável dos animais, um motivo de desobediência à lei. Esse mente à sociedade que pretende usar apenas em sua vantagem; mais valia que Deus nos retirasse a prudência se ela devesse servir de instrumento ao nosso egoísmo.
Quê! direis, será preciso que partilhe o meu pão, o pão que ganhei, que é meu, com o estranho que não conheço, que não tornarei a ver, que talvez me pague com ingratidão! Se ao menos esse pão tivesse sido ganho em comum, se esse homem tivesse feito alguma coisa para o obter, poderia pedir a sua parte pois o seu direito estaria na coperação, mas que há entre mim e ele? Não produzimos nada juntos; não comeremos juntos.
O vício deste raciocínio consiste na falsa suposição de que tal produtor não é necessariamente associado de outro determinado produtor.
Quando se formou legalmente uma sociedade entre dois ou vários particulares, cujas bases foram combinadas, escritas, assinadas, a partir daí não haverá qualquer atrito sobre as consequências. Toda a gente está de acordo que associando-se dois homens para a pesca, por exemplos se um deles não pescar nada, não deixa de ter direito sobre os peixes do seu sócio.

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