sábado, abril 24, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

Acrescentemos, no entanto, para sermos justos em tudo, que essas demonstrações tão enternecedoras de sociedade, fraternidade, amor ao próximo, não impedem os animais de brigar, lutar e ferir-se pela comida; entre eles e nós a semelhança é perfeita.
O instinto existe, maior ou menor, no homem e no animal: a natureza é a mesma. O homem necessita de estar constantemente associado; o animal parece mais capaz de enfrentar a solidão. No homem as necessidades sociais são mais imperiosas, mais complexas; no animal parecem menos profundas, menos variadas. Numa palavra a sociedade tem por fim, no homem, a conservação da espécie e do indivíduo; nos animais é maior a conservação da espécie.
Até agora não descobrimos nada que o homem possa reivindicar apenas para si; o instinto de sociedade e o sentido moral é comum com o animal; e quando imagina, por algumas obras de caridade, tornar-se parecido a Deus, não se apercebe de que obedeceu apenas a um impulso perfeitamente animal. Somos bons, amantes, compadecidos, justos como somos coléricos, gulosos, luxuriosos e vingativos, quer dizer, como os animais.As nossas mais altas virtudes reduzem-se, em última análise, às cegas excitações do instinto: que assunto de canonizacão e apoteose!
Há todavia uma diferença entre nós outros, bípedes, e o resto dos seres; qual é?
Um aluno de filosofia apressar-se-ia a responder: Essa diferença consiste em que nós temos consciência da nossa sociabilidade e os animais não têm consciência da sua; em que nós reflectimos e raciocinamos sobre as operações do nosso instinto social e que nos animais não se passa nada de semelhante.
Irei mais longe: é pela reflexão e raciocínio de que parecemos exclusivamente dotados que sabemos que é prejudicial primeiro aos outros, depois a nós próprios resistir ao instinto de sociedade que nos governa e que chamamos justiça; é a razão que nos ensina que o homem egoísta, ladrão, assassino, traidor à sociedade, peca contra a natureza e se torna culpado em relação aos outros e a si próprio quando faz o mal com conhecimento; é enfim o sentimento do nosso instinto social por um lado, e a nossa razão por outro, que nos faz julgar que o nosso semelhante deve assumir a responsabilidade dos seus actos. Este o princípio do remorso, da vingança e da justiça penal.
Mas tudo isso fundamenta uma diversidade de inteligência entre os animais e o homem e de maneira nenhuma uma diversidade de afeições; porque, se raciocinamos mais relações com os nossos semelhantes também raciocinamos nas mais triviais acções como beber, comer, escolher uma mulher, eleger um domicílio; raciocinamos sobre todas as coisas da terra e do céu, nada há a que não se aplique o nosso poder de raciocínio. Ora, da mesma maneira que o conhecimento que adquirimos dos fenômenos exteriores não influi nas suas causas e leis, todavia, a reflexão, iluminando o nosso instinto, esclarece-nos sobre a nossa natureza sensível sem lhe alterar o carácter; informa-nos da nossa moralidade mas não a muda nem a modifica. O descontentamento que sentimos de nós próprios depois de uma falta, a indignação que nos invade à vista da injustiça, a ideia do castigo merecido e da satisfação devida são efeitos de reflexão e não efeitos imediatos do instinto e das paixões efectivas. A inteligência, não digo exclusiva porque os animais também têm o sentimento do mau proceder e irritam-se quando um dos seus é atacado, mas a inteligência infinitamente superior que temos dos nossos deveres sociais, a consciência do bem e do mal não estabelece, relativamente à moral, uma diferença essencial entre o homem e os animais.

Sem comentários: