domingo, maio 02, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

A justiça é a sociabilidade manifestando-se pela admissão na participação das coisas físicas, únicas susceptíveis de peso e medida; a equidade é uma justiça acompanhada de admiração e estima, coisas que não se medem.
Daí se deduzem várias consequências.
1.º - Se somos livres de dar a nossa estima mais a um que a outro e em todos os graus imagináveis, não o somos de lhe fazer maior a sua parte nos bens comuns, porque ao impormos o dever de justiça antes de equidade, o primeiro deve sempre preceder o segundo. Essa mulher, admirada pelos antigos, forçada por um tirano a escolher entre a morte do irmão e a do marido, abandonando este com o pretexto de que podia reencontrar um marido mas não um irmão, essa mulher, digo, obedecendo ao sentimento de equidade, faltou à justiça e fez uma má acção, porque a sociedade conjugal é de direito mais estreita que a sociedade fraterna, portanto a vida do próximo não é coisa que nos pertença.
Segundo o mesmo princípio, a desigualdade de trabalho não pode ser admitida na legislação com o pretexto de desigualdade de talentos, porque a repartição dos bens vem da justiça e da actividade da economia, não da do entusiasmo.
Assim, no que respeita às doações, testamentos o sucessões, a sociedade, cuidando ao mesmo tempo das afeições familiares e dos seus próprios direitos, não deve nunca permitir que o amor e o favor destruam a justiça; e alegremo-nos acreditando que o filho há muito associado aos trabalhos do pai tem mais capacidade que qualquer outro de prosseguir a sua tarefas, que o cidadão surpreendido pela morte, no cumprimento da sua obra, por um gosto natural e pela predilecção ao seu trabalho, saberá designar o sucessor mais digno, deixando o herdeiro discernir entre vários o direito de optar entre diversas heranças, pois a sociedade não pode tolerar nenhuma concentração de capitais e de indústria em proveito de um único homem, nenhum açambarcamento de trabalho, nenhuma invasão (1).
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(1) A justiça e a equidade nunca foram compreendidos.
«Supunhamos que há para partilhar ou distribuir um saque de doze coisas tiradas ao inimigo, entre Aquiles e Ajax. Se as duas pessoas fossem iguais, o saque também deveria ser aritmeticamente igual.

2.º - A equidade, a justiça, a sociedade, só podem existir num ser vivo relativamente aos indivíduos da sua espécie; não poderiam ter lugar de uma raça para outra, por exemplo do lobo para a cabra, da cabra para o homem, do homem para Deus, ainda menos de Deus para o homem. A atracção da justiça, da equidade, do amor pelo Ser supremo é um puro antropomorfismo; o os epíteros de justo, clemente, misericordioso e outros que damos a Deus devem ser retirados das nossas litanias. Deus só pode ser considerado como justo e bom relativamente a um deus; ora Deus é único e solitário; por consequéncia, não saberia experimentar afeições sociais tais como a bondade, a equidade, a justiça. Diz-se que o pastor é justo para os seus carneiros e os seus cães? não; mas, se quisesse tirar tanta lá de um cordeiro de seis meses como de um carneiro de dois anos, se exigisse que um cachorro fizesse o serviço do rebanho como um velho cão, não se diria que era injusto mas sim louco; entre o homem e o animal não há sociedade se bem que possa haver afeição;
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Aquiles teria seis, Ajax seis: e se se seguisse essa igualdade aritmética o próprio Térsito teria uma parte igual à de Aquiles, o que seria soberanamente injusto e revoltante. Para evitar essa injustiça comparemos o valor das pessoas a fim de lhes dar partes proporcionais ao seu valor. Admitamos que o valor de Aquiles seja o dobro do de Ajax: a parte do primeiro será oito, do segundo quatro. Não haverá igualdade aritmética mas igualidade proporcional. É a esta comparação dos méritos, rationum, que Aristóteies chama justiça distributiva; tem lugar segundo a proporção geométrlca. (Toullier, Direito francês segundo a ordem do Código.)
Aquiles e Ajax são ou não associados? Toda a questão reside ai. Se Aquiles e Alax longe de serem associados, estão ao serviço de Agamemnon que lhes paga, nada há a dizer sobre a regra de Aristóteles: o senhor que comanda escravos pode prometer dupla ração de aguardente a quem fizer corveia dupla. É a lei do despotismo, é o direito da servidão. Mas se Ajax e Aquiles são sócios tem que haver igualdade. Que importa que Aquiles seja forte como quatro e Ajax só forte como dois? Este pode sempre responder que é livre; que se Aquiles é forte como quatro, cinco o matarão; que servindo-se da sua pessoa, ele, Aiax, arrisca tanto como Aquiles. É aplicável a Térsito o mesmo raciocínio: se não sabe bater-se que se faça cozinheiro, despenseiro ou copeiro: se não serve para nada que o metam no hospital: em qualquer caso não o podem violentar a impor-lhe leis.
Só há dois estados possíveis para o homem: estar dentro ou fora da sociedade. Na sociedade as condições são necessariamente iguais excepto o grau de estima e consideração que cada um pode alcançar. Fora da sociedade o homem é uma matéria explorável, um instrumento capitalizado, muitas vezes um móvel incómodo e inútil.

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