segunda-feira, maio 03, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

o homem gosta dos animais como coisas, como coisas sensíveis se se quiser, não como pessoas. A filosofia, depois de ter eliminado da ideia de Deus as paixões que a superstição lhe emprestou, será então forçada a eliminar ainda essas virtudes com que a nossa piedade liberal o gratifica (1).
Se Deus descesse à Terra e viesse habitar entre nós, não poderíamos amá-Lo, se não se fizesse nosso semelhante; nem dar-lhe nada, se não produzisse algum bem; nem escutá-Lo se não provasse que nos enganamos; nem adorá-Lo se não manifestasse o seu poder. Todas as leis do nosso ser, afectivas, económicas, intelectuais, nos diriam para O tratar como aos outros homens, quer dizer, segundo a razão, a justiça e a equidade. Daí tiro a consequência de que se alguma vez Deus se puser em comunicação imediata com o homem deverá fazer-se homem.
Ora, se os reis são as imagens de Deus e os ministros das suas vontades só podem receber de nós o amor, a riqueza, a obediência e a glória, com a condição de produzirem em proporção da despesa, raciocinarem com os servidores, trabalharem como nós, tornarem-se sociáveis e fazerem grandes coisas sózinhos. Ainda com mais razão, como alguns o pretendem, se os reis são funcionários públicos, o amor que lhes é devido mede-se pela sua amabilidade pessoal; a obrigação de lhes obedecer pela demonstração das suas ordens; a sua lista civil pela totalidade da produção social dividida pelo número dos cidadãos.
Assim tudo se harmoniza para nos dar a lei da igualdade: jurisprudência, economia política, psicologia. O direito e o dever, a recompensa devida ao talento e ao trabalho, os impulsos do amor e do entusiasmo, tudo se regula antecipadamente por uma bitola inflexível, tudo deriva do número e do equilíbrio. A igualdade das condições, eis o princípio das sociedades, a solidariedade universal, eis a sanção da lei.
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(1) Entre a mulher e o homem pode existir amar, paixão, laços de hábito e tudo o que se quiser, não há verdadeiramente sociedade. O homem e a mulher não formam uma empresa. A diferença dos sexos cava entre eles uma separação da mesma natureza que a diferença de raças provoca nos animais. Assim, bem longe de aplaudir o que hoje se chama emancipação da mulher, inclinar-me-ia bem mais a colocar a mulher em reclusão, se fosse preciso chegar a esse extremo. O direito da mulher e as suas relações com o homem ainda estão por determinar: a legislação matrimonial, assim como a legislação civil, está por fazer.
A igualdade das condições nunca foi realizada devido às nossas paixões e ignorância; mas a nossa oposição a essa lei cada vez faz ressaltar mais a sua necessidade: a história dá um testemunho perpétuo disso e toda a sequência dos acontecimentos no-lo reveja. A sociedade progriide de equação em equação; as revoluções dos impérios apenas apresentam, aos olhos do observador economista, tanto a redução de quantidades algébricas que se entre deduzem; tanto o destaque de uma incógnita, trazida pela operação infalível do tempo. Os números são a providência da história. Sem dúvida que o progresso da humanidade tem outros elementos; mas na multidão das causas secretas, que agitam os povos não há mais poderosas, mais regulares, menos desconhecidas que as explosões periódicas do proletariado contra a propriedade. A propriedade, agindo ao mesmo tempo pela exclusão e invasão enquanto a população se multiplica, foi o principio gerador e a causa determinante de todas as revoluções. As guerras de religião e conquista quando não foram até à exterminação das raças foram só perturbações acidentais e logo reparadas na progressão matemática da vida dos povos. Tal é o poder de acumulação da propriedade, tal é a lei de degradacão e morte das sociedades.
Vejam, na Idade Média, Florença, república de comerciantes e corretores, sempre rasgada pelas facções tão conhecidas pelos nomes de Guelfos e Gibelinos e que não eram, no fim, mais que o pequeno povo e a aristocracia proprietária armadas uma contra a outra; Florença, dominada pelos banqueiros e sucumbindo, por fim, sob o peso das dívidas (1): vejam Roma na antiguidade, devorada desde a nascença pela usura, no entanto, floresoendo enquanto o mundo conhecido forneceu trabalho aos seus terríveis proletários, ensanguentada pela guerra civil em cada intervalo de repouso e morrendo de esgotamento quando o povo perdeu, com a antiga energia, até à última centelha do senso moral; Cartago, cidade de comércio e dinheiro, continuamente dividida por concorrências intestinas; Tiro, Saida, Jerusalém, Nínive, Babilónia, por sua vez arruinadas por rivalidades de comércio e, como hoje diríamos, pela falta de comércio:
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(1) «O cofre-forte de Cosme de Médicis foi o túmulo da liberdade fiorentina», dizia Michelet, no Colégio de França.

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