sábado, junho 26, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

Factos análogos, mas inversos, observam¬ se no governo democrático.
Tenta¬ se determinar, com toda a sagacidade e precisão possíveis, os direitos e obrigações dos cidadãos, as atribuições dos funcionários, prever os incidentes, as excepções e anomalias: a fecundidade do imprevisto ultrapassa em muito a prudência do homem de Estado, e surgem tanto mais litígios, quanto mais leis se produzem. Tudo isto exige da parte dos agentes do poder uma iniciativa e um arbítrio que, para se fazer ouvir, não tem senão um meio, que é o de serem constituídos em autoridade. Retirem ao princípio democrático, retirem à liberdade esse sanção suprema, a autoridade, o Estado desaparece imediatamente. É claro no entanto que já não estamos então no contrato livre, a menos que se defenda que os cida¬dãos estão perfeitamente de acordo, em caso de litígio, em aceitar a deci¬são de um deles, magistrado designado de antemão: o que é exacta¬mente renunciar ao princípio democrático e fazer acto de monarquia.
Que a democracia multiplique tanto quanto quiser, com os funcioná¬rios, as garantias legais e os meios de controlo, que cerque os seus agentes de formalidades, chame sem cessar os cidadãos à eleição, à discussão, ao voto: queira ou não queira, os seus funcionários serão homens de autori¬dade, o nome está dado; e se entre esse pessoal de funcionários públicos se encontrar um ou alguns encarregados da direcção geral dos assuntos, esse chefe, individual ou colectivo, do governo, é o que o próprio Rosseau chamou príncipe; por pouco não é um rei.
Pode¬ se fazer observações análogas sobre o comunismo e sobre a anarquia. Não existiu nunca um exemplo de uma comunidade perfeita; e é pouco provável por alto que seja o nível de civilização, de moralidade e de sabedoria que o género humano atinja, que todos os vestígios de governo e de autoridade desapareçam. Mas, ao passo que a comunidade continua a ser o sonho da maioria dos socialistas, a anarquia é o ideal da escola económica , que tende francamente a suprimir toda a instituição governa¬mental e a constituir a sociedade somente sobre as bases da propriedade e do trabalho livre.
Não vou multiplicar mais os exemplos. O que acabo de dizer é sufici¬ente para demonstrar a verdade da minha proposição, a saber: que a mo¬nar¬quia e a democracia, a comunidade e a anarquia, não podendo reali¬zar¬ se nem uma nem outra na pureza dos seus ideais, ficam reduzidas a completar¬ se uma e outra por meio de empréstimos recíprocos.
Há aqui, de certo, com que humilhar a intolerância dos fanáticos que não podem ouvir falar de uma opinião contrária àsua sem sofrer uma espécie de horror. Que aprendam então, os desgraçados, que eles mesmos são necessariamente infiéis ao seu princípio, que a sua fé política é tecida de inconsequências, e possa o poder por sua vez não ver mais, na discus¬são dos diferentes sistemas de governo, qualquer pensamento faccioso! Convencendo¬ se de vez que estes termos de monarquia, democracia, etc. não exprimem senão concepções teóricas, muito afastadas das instituições que parecem traduzir, o monárquico, às palavras de contrato social, de soberania popular, de sufrágio universal, etc., ficará calmo; o democrata, ouvindo falar de dinastia, de poder absoluto, de direito divino, guardará sorrindo o seu sangue frio. Não há em absoluto verdadeira monarquia; não há em absoluto verdadeira democracia. A monarquia é a forma primitiva, fisiológica e por assim dizer patronímica do Estado; vive no coração das massas e atesta¬ se sob os nossos olhos com força pela tendência geral à unidade. A democracia por seu lado fervilha de todos os lados; fascina as almas generosas, e apodera¬ se em todos os lados da elite da sociedade. Mas está na dignidade da nossa época renunciar de vez a essas ilusões, que demasiadas vezes degeneram em mentiras. A contradição está no fundo de todos os programas. Os tribunos populares juram, sem se aper¬ceberem, pela monarquia; os reis pela democracia e anarquia. Depois da coroação de Napoleão I, as palavras República francesa, podiam ler¬ se durante muito tempo sobre uma das faces das moedas, que possuíam na outra, com a efígie de Napoleão, o título imperador dos Franceses. Em 1830, Luís¬ Filipe foi designado por La Fayette como a melhor das re¬públicas; não foi ele também apelidado o rei dos proprietários? Gari¬baldi prestou a Vítor¬ Emanuel o mesmo serviço que La Fayette a Luís¬ Filipe. Mais tarde, é verdade, La Fayette e Garibaldi pareceram arrepen¬der¬ se; mas a sua confissão deve conservar¬ se, tanto mais que toda a re¬trac¬tação seria ilusória. Nenhum democrata se pode afirmar puro de todo o monarquismo; nenhum adepto da monarquia gabar¬ se de ser livre de todo o republicanismo. É dado adquirido que a democracia não parecendo ter repugnado à ideia dinástica tão pouco que à ideia unitária, os adeptos dos dois sistemas não têm o direito de se excomungar, e que a tolerância é¬ lhes uma incumbência mútua.
O que é presentemente a política, se é impossível a uma sociedade constituir¬ se exclusivamente sobre o princípio que ela prefere; se, não importa o que faça o legislador, o governo, aqui reputado de monárquico, ali de democrático, é para sempre um composto sem franqueza, onde os elementos opostos se misturam em proporções arbitrárias ao grau do ca¬pri¬cho e dos interesses; onde as definições por mais exactas conduzem fatalmente à confusão e à promiscuidade; onde, em consequência, todas as conversões, todas as deserções se podem fazer admitir, e a inconstância passar por honorável? Que campo aberto ao charlatanismo, à intriga, à traição! Que Estado poderia subsistir em condições tão dissolventes. O Estado não está ainda constituído que traz já na contradição da sua ideia o seu princípio de morte. Estranha criação, onde a lógica fica impotente, enquanto só a inconsequência é prática e racional 19!

19 Haveria uma interessante obra a escrever sobre as Contradições políticas, para fazer contra peso às Contradições económicas. Pensei nisso mais que uma vez; mas de¬sen-corajado pelo mau acolhimento da crítica, distraído por outros trabalhos, renun¬ciei a ela. A impertinência dos fazedores de ajustes de contas seria ainda ale¬grada com a antinomia, a tese e a antítese; o espírito francês, por vezes tão pene¬trante e tão preciso, ter-se-ia mostrado, na pessoa dos senhores jornalistas, bem pre¬tensioso, bem ridículo e bem tolo; os basbaques ignorantes teriam contado um novo triunfo, e tudo teria sido dito. Teria poupado uma mistificação aos meus compa¬triotas, dando-lhes à primeira a solução de que sempre lhes seria devedor, se tivesse ex¬posto di¬ante deles todas as dificuldades do problema*.

* Proudhon vinga-se nesta nota dos ultrajes que lhe dirigiram belgas e franceses pelo motivo de ter escrito nos artigos sobre a Itália, onde combatia a unidade daquele país e manifestava uma decidida preferência pela confederação estipulada pela paz de Villafranca. Esses ultrajes foram o motivo próximo que principalmente o moveram a escrever o presente livro. (N.T.)

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