Da divergência desses dois princípios nascem primordialmente, sob a influência das paixões e dos interesses contrários, duas tendências inver¬sas, duas correntes de opinião opostas: os apoiantes da autoridade tenden¬tes a deixar o menos possível um lugar à liberdade, seja individual, seja corporativa ou local, e a explorar sobre esta premissa, a seu proveito pes¬soal e prejuízo da multidão, o Poder do qual eles formam a escolta; os adeptos do regime liberal, pelo contrário, tendem a restringir indefinida¬mente a autoridade e vencer a aristocracia pela determinação incessante das funções públicas, dos actos do poder e das suas formas. Pelo efeito da sua posição, pela humildade da sua fortuna, o povo procura no governo a igualdade e a liberdade; pela razão contrária, o patriciado proprietário, capitalista e empreendedor, inclina¬ se mais para uma monarquia protec¬tora das grandes existências, capaz de assegurar a ordem para seu pro¬veito, que, em consequência, dê a parte maior à autoridade, a menor à liberdade.
Todos os governos de facto, sejam quais forem os seus motivos ou re¬ser¬vas, se reconduzem assim a uma ou outra destas duas fórmulas: Su¬bordinação da Autoridade à Liberdade, ou Subordinação da Liber¬dade à Autoridade.
Mas a mesma causa que atira uma contra a outra a burguesia e a plebe em breve as obriga a fazer meia¬ volta. A democracia, para assegurar o seu triunfo, ignorante aliás das condições do poder, incapaz de o exercer, toma um chefe absoluto, perante cuja autoridade todos os privilégios de casta desaparecem; a burguesia, que teme o despotismo tanto como a anarquia, prefere consolidar a sua posição pelo estabelecimento de uma realeza constitucional. De tal forma que, no fim de contas, é o partido que mais necessidade tem de liberdade e de ordem legal que cria o absolu¬tismo; e é o partido do privilégio que institui o governo liberal, dando¬ lhe como san¬ção a restrição do direito político.
Vemos por isto que abstraindo das considerações económicas que pla¬nam sobre o debate, burguesia e democracia, imperialismo e constitu¬cionalismo, ou qualquer nome que se dê a esses governos antagónicos, são equivalentes, e que questões como as seguintes: Se o regime de 1814 não era melhor que o de 1804; se não era vantajoso para o país retroceder da constituição de 1852 à de 1830; se o partido republicano se fundirá no partido orleanista ou se aliará ao império; tais questões, digo, do ponto de vista do direito e dos princípios, são pueris: um governo, com os dados que conhecemos, sem valor senão pelos acontecimentos que lhe deram origem e os homens que o representam, e toda a discussão teórica a tal respeito é vã e não pode conduzir senão a aberrações.
As contradições da política, as reviravoltas dos partidos, a inversão perpétua dos papéis, são tão frequentes na história, têm um lugar tão grande nos assuntos humanos, que não posso deixar de aí insistir. O dua¬lismo da Autoridade e da Liberdade dá a chave para todos estes enigmas: sem esta explicação primordial, a história dos Estados seria o desespero das consciências e o escândalo da filosofia.
A aristocracia inglesa fez a Magna Carta; os puritanos produziram Cromwell. Em França, é a burguesia que assenta as bases imorredouras de todas as nossas constituições liberais. Em Roma, o patriciado tinha orga¬nizado a república; a plebe inventou os Césares e os pretorianos. No sécu¬lo dezasseis a reforma foi inicialmente aristocrática, as massas continuam católicas e fabricam¬ se messias do tipo de Jean de Leyde: era o inverso daquilo que se tinha visto quatrocentos anos antes, quando os nobres queimavam os Albigensesj). Quantas vezes, esta observação é de Ferrari, a idade média não viu os Gibelinosk) tornarem¬ se Guelfosl), e os Guelfos transformarem¬ se em Gibelinos! Em 1813, a França combate pelo despo¬tismo, a Coligação pela liberdade, precisamente o contrário do que se tinha passado em 1792. Hoje em dia os legitimistas e os clericais apoiam a fede¬ração, os democratas são unitários. Não acabaríamos de citar exemplos destes; o que não impede que as ideias, os homens e as coisas devam sempre distinguir¬ se pelas suas tendências naturais e as suas origens, que os azuis não sejam os azuis, e os brancos sempre os brancosm).
O povo, devido à sua própria inferioridade e à sua miséria, formará sempre o exército da liberdade e do progresso; o trabalho é republicano por natureza: o contrário implicaria contradição.
j)Do latim Albigense < Albi. Indivíduo partidário duma seita religiosa e política que se difundiu no século XII pelo sul de França, principalmente em Albi. (N.T.)
k)Do italiano Ghibelino e do alemão Weiblingen. Partidário do imperador da Alema¬nha, na Itália, durante a idade média. (N.T.)
l)Membro de uma seita política na Itália, entre os séculos XII e XIV, apologista do Papa e da independência italiana. (N.T.)
m)Expressão que no contexto é semelhante a esta outra, regularmente utilizada na lín¬gua portuguesa: As aparências enganam. (N.T.)
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