sexta-feira, junho 06, 2014

0,35% de drama político

Há três anos que Passos Coelho recebe a notícia da inconstitucionalidade da suas medidas orçamentais com a surpresa e indignação da primeira vez. Há três anos que Passos Coelho dramatiza e não hesita em lançar o país numa crise institucional a cada chumbo - e têm sido muitos - dos diplomas do seu Governo. 
A teoria de Passos Coelho, proferida com todas as letras pelo porta-voz e vice presidente do partido,  Marco António Costa , é relativamente simples: a Constituição da República é um fator de desestabilização e de atraso, que impede o progresso e a recuperação da economia. Vamos por partes.
Em três anos, é a oitava vez que Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade de medidas do governo. Na prática, o executivo ainda não foi capaz de produzir um documento orçamental que estivesse de acordo com a Lei Fundamental.   
Este governo tem um fetiche pela inconstitucionalidade. Faz-lhe espécie a existência de instituições governadas por outros princípios que não a obsessão orçamental. Mais que isso, o primeiro-ministro não tem pejo nem peias em usar o Tribunal Constitucional como personagem involuntária na sua - já cansativa - encenação política.
A estranha noção de equidade desta maioria, traduzida nas medidas agora declaradas inconstitucionais, passava por estender os cortes a salários de 675 euros, ao subsídio de desemprego e de doença, e às pensões de sobrevivência.
Perante a impossibilidade de arrancar mais 700 milhões de euros aos trabalhadores, desempregados e pensionistas, Passos Coelho decidiu avançar para um braço de ferro com o Tribunal Constitucional.
Sejamos claros. Os 700 milhões de euros, que para muitas pessoas fazem a toda diferença nas suas escolhas diárias de sobrevivência, valem 0,35% do PIB. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que não é verdade que não haja dinheiro para compensar estes cortes. É sabido que o governo tem uma folga orçamental de €900 milhões, para além da almofada orçamental. Quer dizer ainda que o seu impacto nas metas do défice seria 20 vezes inferior a todas as revisões que o governo já fez no passado. Não são as contas orçamentais de curto prazo que justificam o drama.
O drama justifica-se porque o governo sabe que as metas de longo prazo acordadas através do Tratado Orçamental não são compatíveis com um Tribunal que respeite uma Constituição que protege serviços públicos e níveis mínimos de equidade e justiça. Por isso é preciso descredibilizar ambos. Os Juízes, porque são "mal escolhidos" e "mal preparados"; e o Tribunal, porque tem demasiados poderes para "não ser escrutinado democraticamente". Três notas breves sobre estas declarações:
  1. Seis dos treze juízes do Tribunal Constitucional foram indicados pelo PSD, um deles pelo CDS. Apesar disto, 10 em 13 consideram os cortes inconstitucionais;
  2. Sendo o escrutínio democrático importante, a independência do poder judicial também o é. Que pena não ver Passos Coelho preocupado com o escrutínio democrático da Comissão Europeia ou do Banco Central Europeu, cujas políticas estão a colocar a nossa Constituição (democrática) em causa;
  3. Se os magistrados que chegam ao TC são mal preparados, que dizer de um Governo que apresentou três orçamentos de Estado, todos eles inconstitucionais?
O drama também se justifica porque, para lá do seu neo-justicialismo em relação ao TC, o primeiro-ministro sabe que precisa de um bode expiatório. Afinal, as coisas não vão tão bem como se esperava. O PIB caiu no primeiro-trimestre, assim como o emprego, a dívida está longe do prometido e a Troika está tão presente em Portugal como estava no dia 16 de Maio. Um drama político vinha mesmo a calhar, para ver se ninguém se lembra de perguntar pela "retoma" e pelo "milagre económico".